Esquadrinhar o invisível

por João Paulo André Químico Julgo que nunca tinha assistido a duas produções de uma mesma ópera num período tão curto: em seis semanas vi a Elektra (1909) de Richard Strauss em Oslo e no Porto. A segunda foi infinitamente melhor, apesar da impressionante voz da soprano que interpretou Crisótemis na primeira (Elisabeth Teige, que…

por João Paulo André
Químico

Julgo que nunca tinha assistido a duas produções de uma mesma ópera num período tão curto: em seis semanas vi a Elektra (1909) de Richard Strauss em Oslo e no Porto. A segunda foi infinitamente melhor, apesar da impressionante voz da soprano que interpretou Crisótemis na primeira (Elisabeth Teige, que este Verão cantará os papeis wagnerianos de Senta e Elisabeth no Festival de Bayreuth). Ainda que os cantores que se apresentaram no Porto não tenham sido vocalmente perfeitos – longe disso, à exceção da formidável meio-soprano Monika Bohinec, a quem coube o papel da impenitente Clitemnestra –, a sua entrega foi notável, incluindo as criadas. Em conjunto com a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música – em belíssima forma e sempre atenta à ágil batuta de Stefan Blunier, seu maestro titular –, mostraram a intensidade desta obra-prima, pioneira do expressionismo musical. Curiosamente, o facto de ter sido em versão de concerto só ajudou a uma maior concentração no canto e no assombroso texto de Hugo von Hofmannsthal (foto esq.), baseado na adaptação que, em 1903, fizera da tragédia de Sófocles. Não será exagero dizer que foi uma Elektra eletrizante.

A história conta-se rapidamente: em Micenas, Clitemnestra, mãe de Electra, está amantizada com Egisto. Juntos, assassinaram o Rei Agamenon, marido dela e pai de Electra, acabado de regressar vitorioso da Guerra de Troia. Clitemnestra, receando que Orestes, o filho exilado, a mate, vive torturada com os pesadelos que todas as noites a invadem. A outra filha, Crisótemis, anseia por uma vida normal, mas Electra, obcecada com a vingança da morte do pai, planeia matar a mãe e o padrasto da mesma forma que estes o eliminaram: à machadada. Realizado o seu desejo, entrega-se a uma dança extática e morre.

O jovem Hofmannsthal, que colaboraria com R. Strauss (foto dir.) em mais 5 óperas, fez alterações à peça de Sófocles. Não só introduziu a dança final de Elektra e a sua morte, como reestruturou as personagens à luz do novo interesse pela psique e por conceitos como instintos e pulsões, resultante do emergente campo da psicanálise. O artigo de Sigmund Freud A sexualidade na etiologia das neuroses fora publicado em 1898 e o seu célebre livro A Interpretação dos Sonhos em 1899. Enquanto os antigos gregos acreditavam que era através dos sonhos que os deuses falavam aos humanos (para acalmar as divindades, Clitemnestra oferece-lhes sacrifícios: «Seja quem for que os envie, assim que o sangue certo corra não há demónio que atormente»), Freud viu na sua decifração uma forma de trazer o inconsciente ao consciente. Quase um atlas de anatomia humana (tantos são os órgãos, tecidos e partes do corpo referidos – carne, sangue, veias, tendões, garganta, pálpebras, medula, fígado, …), o libreto, servido por uma partitura que vai aos limites da tonalidade, está repleto de ressonâncias freudianas: a protagonista encontrar-se-ia num processo de competição psicossexual com a mãe. Freud designou o conflito por complexo de Édipo feminino; Carl Jung viria a cunhá-lo de complexo de Electra.

Não era só a mente que começava a ser perscrutada no seu interior: a ciência também avançava no desvelamento da estrutura atómica da matéria. Os últimos anos do século XIX foram providenciais: em finais de 1895 Röntgen descobriu os raios X, e Becquerel, meses depois, as igualmente invisíveis radiações do urânio, que Marie Curie, em 1898, designou por radioatividade. Seria com raios alfa (que conjuntamente com os raios beta e a radiação gama constituem as principais formas de emissão por substâncias radioativas) que, em 1911, Rutherford bombardearia uma fina folha de ouro, concluindo que os átomos são constituídos por uma parte central, o núcleo, onde se concentra a sua massa, e que os eletrões se movem em seu redor. Os raios X, que Röntgen logo notara tornarem visíveis os ossos do corpo, também não tardariam a ser usados na decifração dos arranjos atómicos em estruturas cristalinas (estudos de difração de raios X): em 1913, W. L. Bragg e o seu pai, W. H. Bragg, determinaram, respetivamente, a estrutura do cloreto de sódio e a do diamante.

Em Paracelsus (1899), a peça de Arthur Schnitzler centrada numa experiência de hipnose que esbate as fronteiras entre o sonho e a realidade, as últimas palavras do célebre médico e alquimista do Renascimento são: «Sonhar e acordar, verdade e mentira misturam-se». Visível e invisível também.