Existem muitas formas de arte e de expressão artística, mas a verdade é que há também restauros de obras que se tornaram polémicos. Por exemplo, quando, em 2012, uma idosa tentou restaurar a pintura ‘Ecce Homo’, um fresco no santuário de Nossa Senhora da Misericórdia de Borja, em Saragoça, e a pintura ficou conhecida como ‘Macaco Cristo’. Cecilia Gimenez, que estava na casa dos 80 anos, teria ficado chateada com a deterioração do fresco e decidiu “restaurar” a imagem.
A senhora alegou ter tido a autorização do padre para realizar o trabalho. «(O) padre sabia! Ele sabia! Como é que se pode fazer algo assim sem permissão? Ele sabia!». À época, o correspondente da BBC na Europa, Christian Fraser, disse que as pinceladas delicadas de Elias Garcia Martinez foram «enterradas sob um respingo aleatório de tinta», sendo que o «outrora digno retrato agora se assemelha a um esboço de giz de cera de um macaco muito peludo numa túnica mal ajustada».
«Os restauros mais polémicos são aqueles que se realizam por pessoas que não são habilitadas para tal e que se autointitulam restauradores. Além disso, os restauros que prometem maior polémica são aqueles que se dirigem a obras de arte mais emblemáticas ou com mais tendência para a polémica como sucede com os Painéis de São Vicente de Fora. Se olharmos para a arquitetura, as polémicas em torno dos restauros adensam-se significantemente, sobretudo quando os casos são difíceis de resolver como sucede com a Sé de Lisboa ou com a Catedral de Notre Dame de Paris. Neste último caso, existiram projetos demasiado ‘criativos’ que foram imediatamente afastados», explica à LUZ Clara Moura Soares, Professora Auxiliar e investigadora integrada do ARTIS – Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), que desenvolve atividade particularmente no grupo de investigação Patrimonium – Ciências do Património e Mercados da Arte e é diretora da licenciatura em História da Arte da FLUL.
«Os mais fidedignos são aqueles que são realizados por profissionais habilitados e que se baseiam em estudos realizados previamente. Seja o estudo bibliográfico e documental, seja o estudo laboratorial (raios-x, refletografia de infravermelhos, análise de pigmentos, etc.), caso seja necessário e oportuno», adianta a investigadora responsável do Eneias – A coleção de pintura da Biblioteca Nacional de Portugal: do resgate do património artístico conventual na implantação do Liberalismo ao estudo integrado de conservação e divulgação, fruto de uma parceria com o Instituto Politécnico de Tomar, abordando, de seguida, as características dos bons restauros. «Como disse anteriormente, os bons restauros têm que ser realizados por profissionais devidamente preparados. Em Portugal temos algumas escolas conceituadas na Universidade Nova, no Instituto Politécnico de Tomar e na Universidade Católica. Além disso, são restauros em que os profissionais se regem pelo Código Deontológico da Profissão do Conservador Restaurador e pelas Cartas Internacionais do Património», sublinha, sendo que, independentemente dos ‘bons’ e ‘maus’ restauros, pode existir polémica.
Em 2020, uma carta aberta alertando para os riscos inerentes ao restauro dos famosos Painéis de Nuno Gonçalves fez estalar o verniz no meio dos conservadores. O texto da carta, subscrita por 24 personalidades (entre as quais a historiadora Irene Pimentel, o antigo ministro Vera Jardim, o escritor Nuno Júdice e o cientista social Luís Salgado de Matos), referia que as pinturas estão «em perigo porque o ethos atual da restauração de pinturas antigas a óleo autoriza os restauradores a repintarem o quadro baseando-se em princípios que excluem o respeito pela obra a restaurar». E chamava a atenção para um detalhe particular daquela obra emblemática do século XV português: o botim do adolescente que aparece no Painel do Infante, um dos dois painéis centrais do políptico. Jorge Filipe de Almeida, antigo professor universitário e estudioso dos Painéis, acredita que é aí que se encontra a inscrição autoral de Nuno Gonçalves, a data de conclusão e a chave de interpretação da pintura. «Por isso, na nossa exclusiva qualidade de cidadãos interessados, pedimos pela presente ao Sr. Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, ao Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, e à Ministra da Cultura, Doutora Graça Fonseca, que tomem as medidas cautelares adequadas a garantir que o restauro dos Painéis de S. Vicente de Fora, em particular da minúscula zona acima reproduzida [inscrição no botim], não destrua uma peça decisiva do nosso património por via de uma repintura, disfarçada de restauro, que nos privaria da possibilidade de a datar e de identificação iconológica do seu autor, em conhecimento de causa», apelavam os signatários do documento.
A propósito disto, Clara Moura Soares é assertiva: «os Painéis de São Vicente têm estado, desde a sua descoberta, em 1882, sempre envolvidos em polémica. Veja-se sobre o assunto o estudo de Maria João Neto ‘A propósito da descoberta dos Painéis de São Vicente de Fora: contributo para o estudo e salvaguarda da pintura gothica em Portugal’ que desmonta, esclarece e elucida toda esta questão atribuindo a Monsenhor Alfredo Elviro dos Santos a sua descoberta e não a Columbano, que se encontrava na altura em Paris», avança.
«Sobre o teor da carta aberta de 2020 tenho apenas a dizer que o Museu Nacional de Arte Antiga se encontra, desde sempre, rodeado de excelentes técnicos. Luciano Martins Freire, que restaurou a obra em 1910, após a sua descoberta, fê-lo sob orientação de José de Figueiredo, que foi o primeiro diretor do museu. A ambos a conservação e restauro de pintura em Portugal deve muitíssimo. Os documentos que Freire nos deixou atestam o seu ínfimo cuidado nos trabalhos que realizou. Veja-se o texto ‘Elementos para um relatório acerca do tratamento da pintura antiga em Portugal’. Veja-se, ainda, o estudo de António João Cruz ‘Em busca da imagem original: Luciano Freire e a teoria e a prática do restauro de pintura em Portugal cerca de 1900’. O MNAA tem pergaminhos a respeitar e é detentor de um património único, cuja responsabilidade e experiência tem garantido a sua preservação, bem como a sua fruição».
‘Temos profissionais muito bem preparados’
Naquela carta falava-se de «uma repintura, disfarçada de restauro». Será que tal acontece e não há restauros a serem levados a cabo de forma devida? «Os repintes, por vezes, são necessários para que se consiga manter a leitura de uma obra de arte. Existem, porém, critérios e técnicas para a sua realização. Não podem ser feitos de qualquer maneira e estes têm que se revelar necessários para que possam ser uma opção. O princípio da intervenção mínima, que rege eticamente a atuação dos conservadores-restauradores, deve ser respeitado. Assim como o princípio da retratabilidade, ou seja, nenhum tratamento deve impedir que outro tratamento, no futuro, seja realizado», realça a docente universitária. «Já lá vai o tempo em que os restauradores, que frequentemente também eram artistas, se procuravam ‘colocar na pele do artista original’, como defendia no século XIX o arquiteto francês Viollet-le-Duc. Hoje, o restaurador tem que saber respeitar tanto o artista original, como a obra original. O papel do conservador-restaurador é contribuir para a longevidade das obras de arte, permitindo que estas possam ser usufruídas pelas gerações vindouras.
Mal de nós se não existissem restauros ‘levados a cabo de forma devida’. Nesse caso, mais valia nada fazer do que restaurar irremediavelmente uma obra», frisa a também investigadora que, segundo o ARTIS, tem desenvolvido investigação e orientado teses de mestrado e doutoramento em variados domínios das ciências do património, nomeadamente da sua gestão, do inventário e da história e teoria do restauro, assim como do turismo cultural, com livros e artigos publicados. Com foco particularmente no século XIX, a sua dissertação de doutoramento em História da Arte foi consagrada ao estudo dos restauros oitocentistas do Mosteiro de Santa Maria de Belém.
À época, o Fórum dos conservadores-restauradores, que se identifica como «um grupo informal de novecentos e setenta e cinco profissionais, portugueses ou estrangeiros a trabalhar em Portugal, com um curso superior em Conservação e Restauro e associados através da rede social Facebook», reagiu com veemência à carta. «Terão reagido por terem visto a sua profissão posta em causa. Nestas coisas, há sempre o risco de se tomar o todo pela parte. Temos profissionais muito bem preparados na área da conservação e restauro e com trabalho reconhecido internacionalmente».
«Eu própria tive a oportunidade de lidar de perto com a formação destes técnicos no Instituto Politécnico de Tomar, onde fui docente de História da Arte e de Princípios de Conservação e Restauro, entre 1998 e 2006, no curso de Conservação e Restauro. Não existe falta de profissionais e os que existem são muito bem preparados. O mercado de trabalho é que não absorve convenientemente os técnicos que se formam no país», diz com convicção. «O património que temos, pela sua qualidade e diversidade, é digno de destaque, assim como os profissionais que cuidam diariamente do nosso património, tanto do mais mediático, como daquele que poucos conhecem».
«Gostaria de acrescentar que sempre existirá polémica (ou, pelo menos, opiniões divergentes) em torno das intervenções de restauro, até porque não existe um só caminho para se resolverem os problemas que o envelhecimento e a degradação inevitável do património colocam», afirma Clara Moura Soares. «É fundamental, contudo, que nunca se perca de vista dois princípios basilares: que o trabalho de conservação e restauro seja feito por profissionais qualificados, e não por amadores; e que qualquer intervenção seja muito bem documentada, antes, durante e após a realização do trabalho, com estudos, relatórios e fotografias, para que as opções tomadas possam ser devidamente justificadas e julgadas, a todo o momento, se for o caso», conclui.