Neste último Natal, entre as habituais mensagens e e-mails que trocamos uns com os outros, recebi um telefonema que me marcou e me deixou a pensar. A minha ex-coordenadora do USF, onde trabalhei e viria a cessar funções em junho de 2021, altura em que me aposentei, disse-me convictamente após um curto período de conversa que eu «tinha ficado com um lugar no seu coração». Sensibilizado com esta manifestação de amizade e carinho, respondi-lhe: «Querida Susana, como é bom ouvir isso! Sinto o mesmo em relação a ti».
É para mim muito gratificante verificar que a minha passagem pela USF Ajuda não foi em vão. Ficou a marca do meu trabalho, da minha dedicação e do serviço que prestei aos outros. De facto, além de colegas, muitos utentes também me dirigiram nessa quadra palavras de gratidão e de saudade, recordando os tempos em que os acompanhei.
Tanto no telefonema como nas mensagens, está presente uma afetividade que pauta o comportamento de muitos seres humanos. E que é qualquer coisa que já nasce connosco. Ou se tem ou se não tem. Há pessoas mais afetivas e outras menos, há mesmo algumas que não o são de todo, mas nada se pode fazer para contrariar essa natureza.
Entretanto, não é só através da afetividade que se pode conquistar um lugar no coração de alguém. A forma como nos relacionamos com os outros, a solidariedade que lhes manifestamos quer no trabalho como no dia-a-dia, a capacidade de estarmos a seu lado nas horas más, podem fazer com que se chegue lá por outro caminho.
A família, e todo o ambiente que se cria à sua volta, ajuda-nos a seguir no sentido desejado. Mas será que nos dias de hoje ainda há família? Terá algum sentido falar na família? Que mundo estamos nós a construir? Que sociedade é esta que estamos a formar? Que exemplos queremos transmitir aos mais novos? Que recordações iremos dar aos nossos filhos? Como será possível chegar ao coração dos outros se cada vez há mais egoísmo, indiferença e desinteresse entre as pessoas? Parece que se perdeu a amizade, a camaradagem, o sentido de ajudar – e o mais que se vê por aí são pessoas de costas viradas umas para as outras, olhando só para si próprias e preocupadas apenas com o seu ‘eu’.
Partilho um caso do qual tive conhecimento recentemente, que fala por si e nos deve obrigar a refletir para depois tirarmos as devidas conclusões. Numa residência em Lisboa, com quartos alugados a estudantes universitários, que convivem diariamente há cerca de três anos, alguns não sabem sequer o nome dos outros, preferem fazer as refeições no próprio quarto, sozinhos, e o silêncio é a nota dominante naquela casa.
Será isto progresso? Modernidade? Desenvolvimento? A culpa não me parece ser deles, pois julgo que é o reflexo das falhas consecutivas da nossa geração no plano educativo. Já me tenho interrogado sobre isto neste espaço – e deixei até as minhas reticências quanto à família que os jovens de hoje, sendo como são, irão constituir.
Deixarão eles um lugar no coração de alguém? Bem sabemos que os tempos são outros e que tudo vai mudando nesta vida – mas, em minha opinião, o exemplo que citei é deveras preocupante e ultrapassa os limites do razoável
É nossa obrigação lutar por um mundo diferente daquele que temos pela frente. Na família, no trabalho, no dia-a-dia, com os amigos, cada um tem de ‘pôr a render’ os talentos que recebeu. No meu campo profissional, os colegas mais novos têm a grande oportunidade de contribuir para desenvolver a já muito falada – mas cada vez mais distante – humanização da Medicina, tão necessária quanto urgente.
Os doentes são seres humanos, não são números, e a nossa missão é servi-los. Se todos caminharmos neste sentido, o mundo poderá ser melhor e conquistaremos no coração dos homens um lugar. E, no fundo, é essa a grande recompensa.