Por Teresa Nogueira Pinto*
Terminou a segunda edição da Cimeira para a Democracia, uma iniciativa da administração Biden que visa «renovar a democracia nos Estados Unidos e no mundo». Numa lógica multissetorial, a cimeira inclui, para além de cerca de 120 Estados, líderes da sociedade civil e do setor privado. O grupo de coorganizadores, que incluía a Costa Rica, os Países Baixos, a Coreia e a Zâmbia, pretendia, para além da representatividade geográfica, sinalizar casos de sucesso. A Ucrânia foi um dos temas fortes da Cimeira, que começou com um downgrade diplomático de última hora: o presidente Zelensky foi substituído por Dmytro Kuleba, chefe da diplomacia ucraniana. Participaram também líderes da sociedade civil e oposição da Bielorrússia, Venezuela e Nicarágua, três países excluídos do evento. Biden anunciou um pacote de 690 milhões de dólares para apoiar diversas iniciativas e, num comunicado conjunto com o Presidente Yoon anunciou que a próxima Cimeira realizar-se-á na Coreia.
As expectativas eram moderadas. A primeira edição produziu mais de 750 compromissos, mas, na prática, não teve resultados tangíveis e, em muitos dos países, houve retrocessos. No seu discurso, Biden falou num «ponto de inflexão». Mas a realidade parece desafiar o otimismo do Presidente e o contexto mantém-se: a ‘recessão democrática’ que começou em 2005 e tem vários determinantes, desde a rejeição da globalização e o regresso do nacionalismo, à consolidação de regimes de ‘homens fortes’ e, mais importante, às crises internas nas democracias liberais, ameaçadas por contradições, polarização e quebra de confiança nas instituições.
Ausências de peso e presenças duvidosas
Um dos obstáculos à eficácia, simbólica e política, da cimeira prende-se com a indefinição do conceito de democracia, refletida na aparente falta de critério da lista de convidados.
A Turquia e a Hungria, dois aliados no quadro da NATO, foram, mais uma vez, postas de parte. A exclusão da Hungria salta à vista, tendo em conta a participação da União Europeia e dos restantes 26 Estados-membros, e é uma decisão mais geopolítica que política. Mantendo-se firme na condenação da Rússia, o primeiro-ministro Viktor Orbán tem criticado a posição de Washington, que acusa de contribuir para uma escalada do conflito. E, no âmbito da UE, a Hungria tem colocado obstáculos às sanções, que diz não serem eficazes e castigarem as economias europeias. Mas a ausência da Hungria ilustra também os paradoxos desta campanha pela democracia liberal e a sua relação, por vezes incómoda, com a soberania popular: o Fidesz venceu as eleições de 2022, que tiveram uma participação de 69.5 por cento, com 54.1 por cento dos votos. E a Hungria foi o único país a consultar publicamente os eleitores sobre as sanções.
Se a Hungria não passa no crivo, o México, onde o Presidente López Obrador tem tentado cooptar o sistema eleitoral, passa. E passa também a Índia, onde o principal adversário político de Narendra Modi foi recentemente expulso do Parlamento e impedido de participar nas eleições, depois de ser condenado a dois anos de prisão por ter alegadamente difamado o primeiro-ministro.
Pouco separa Modi, um ‘homem forte’, populista e, até ver, popular, de Erdogan. Exceto o facto de, para Washington, Nova Deli ser estrategicamente mais relevante do que Ancara.
Outro ausente foi o Paquistão. Não pelo seu deficit democrático, mas porque Islamabad não quis desagradar a Pequim.
Que democracia?
O Presidente Biden descreve o conflito entre democracia e autocracia como o desafio determinante dos nossos tempos. Mas, na América e no mundo, o significado do conceito é cada vez mais contestado e, por isso, esvaziado de significado político.
Do ponto de vista diplomático, a Cimeira enquadra-se numa lógica bipolar. É uma resposta a Pequim que, em 2021, organizou o primeiro Fórum Internacional sobre a democracia. Na segunda edição participaram mais de 100 países e denunciaram-se as «narrativas monísticas e hegemónicas» da América. Li Shulei, membro do politburo do Partido Comunista Chinês, criticou a abordagem americana, dizendo que a imposição de «transformações democráticas» e «modelos de democracia», ou a formação de «alianças de valores» assentes na oposição «democracia vs. autocracia», criam «divisões e antagonismo», subvertem o próprio «espírito democrático» e deixam um «legado venenoso» que é «desprezado pelos seus alvos». Maria Zakharova, representante da diplomacia russa, descreveu a iniciativa como uma «hipocrisia pomposa».
Mas, se as duas cimeiras, ocorrendo quase em simultâneo, ilustram o regresso da mentalidade bipolar, são hoje evidentes os sinais de que o mundo é multipolar. Representando, para excluídos e não excluídos, mais referências, e mais escolhas.
Contradições americanas
Duas contradições afetam a credibilidade americana neste combate.
Primeiro, e numa linha de continuidade da política externa americana, a administração Biden tem cultivado laços com regimes autoritários, sempre que isso se enquadra nos interesses dos EUA. Nada de novo ou insólito, bastando recordar a frase atribuída a Roosevelt sobre Anastasio Somoza, ditador da Nicarágua: «Somoza may be a son of a bitch, but he’s our son of a bitch».
Segundo, e mais problemático, o facto de a democracia americana já ter tido melhores dias, num contexto marcado pela judicialização da política, a erosão dos consensos mínimos, e a disputa entre duas conceções distintas e irreconciliáveis sobre o que é, ou não, democrático.
Contradições visíveis na Cimeira, onde um dos temas fortes foi o das ‘tecnologias para a democracia’, encorajando-se as empresas tecnológicas a contribuir para o combate ao ‘mau uso das tecnologias’. Sendo inegável que os regimes autoritários recorrem a instrumentos de repressão na esfera virtual, acontecimentos como os Twitter files lançam dúvidas sobre a independência das plataformas digitais face ao poder político, e sobre a salvaguarda da liberdade de expressão e informação na esfera virtual desse ocidente liberal, onde também se censura Enid Blyton e reescreve Agatha Christie.
*Texto editado por Sónia Peres Pinto