Dadrá e Nagar-Haveli. O sarilho dos enclaves

Goa podia ser a rainha do Oriente graças à sua riqueza mas o Estado Português da Índia era muito mais disperso com feitorias em quase todo o sub-continente. E dois enclaves, que a memória esqueceu, faziam parte da região de Damão e de Diu, no Gujarate.

BOMBAIM – A gente podia aprender que a Índia Portuguesa ainda era nossa mas ela já nos tinha voado das mãos há muito tempo. Nos anos-60, os professores, respeitando as normas curriculares, falavam-nos de Goa, Damão e Diu e dos enclaves de Dadrá e Nagar-Haveli como peças de um puzzle que era o Estado Português da Índia. Foi D. Francisco de Almeida, vice-rei da Índia de 1505 a 1509 que decidiu baptizá-lo assim – confessemos que dava um certo sainete. E D. Francisco não perdeu tempo e meteu mãos à obra para mostrar quem mandava: construiu quatro fortes estratégicos na Costa do Malabar, mais para sul do lugar onde agora estou, Bombaim (que também fez, por meros instantes, parte do EstadoPortuguês da Índia até ser dada como dote de Catarina de Aragão no seu casamento com Carlos III de Inglaterra), assentando-lhes os alicerces na ilha de Angediva (ainda sobram por lá uma ruínas para quem quiser dar-se ao trabalho de viajar de barco durante cerca de uma hora a partir de Palolém, uma das praias mais belas de Goa, na toluca – província – de Canacona), em Cananor, Cochim e Coulão. Depois, basicamente, passaram a caber no conceito de Índia Portuguesa todas as cidades portuárias, feitorias e fortalezas para lá do Cabo da Boa Esperança, de tal ordem que até as Molucas, Macau e Nagasáqui entravam na delimitação do termo. Se reduzirmos o conceito àquilo que é, de facto, a Índia – esquecendo por momentos a partição que marcou a ferro e fogo a independência do Raj – encontramos na zona ocidental, a chamada Costa do Malabar, Diu, Surate e Damão; Dadrá e Nagar-Haveli e, à medida que caminhamos para sul; Baçaim, Bombaim e Salsete; Chaul, Goa e Mangalore; Cananor, Calecute, Cranganorre e Cochim; e finalmente Coulão. 

Ao largo, na zona que compõem os arquipélagos das Maldivas e das Laquedivas, as caravelas portuguesas controlavam o comércio e afastavam os árabes como se estes fossem corvos à procura de restos de lixo. À medida que caminhamos de sul para norte, agora na costa oposta, que tem o nome de Coromandel, surge-nos Tuticurim e Nagatapan; São Tomé de Meliapore e Paliacate; Masulipatão, Hughli e Chittagong (atualmente no Bangladesh). Um sistema colonialista demasiado frágil para suportar a concorrência de britânicos ou espanhóis que se lançavam para o interior adquirindo terras atrás de terras e colocando-as sobre um rígido governo central.

Tenho por hábito ler tudo o que se publica sobre a Índia e chegou-me recentemente às mãos um livro de José Nascimento e Carmo Vaz, intitulado Viagem à Índia e Goa na Memória, que prometia ser interessante mas tive de colocar imediatamente de lado por ter a excrescência inútil de um texto de apoio que só pode ter sido escrito por um dipsómano que aterrou bêbado no aeroporto de Bandolim, segundo palavras do próprio (o nome do aeroporto é Dabolim) andou a correr ceca e meca, numa insuportável lamechice, para comprar uma garrafa de whisky (algo que em Goa há ao tropeçar de cada esquina), terminando triunfalmente com a descrição de uma reunião de amigalhaços (muito provavelmente também embriagados como esponjas) enquanto observa o Cruzeiro do Sul. Como Velha Goa, a antiga capital dos portugueses dista cerca de 1700 da linha do Equador, para norte, e o Cruzeiro do Sul só pode ser observado em linhas muito próximas do traço que divide a Terra em dois hemisférios, imagino a quantidade de whisky que terá sido necessária para escrever tamanha porcaria o que, repito, é pena porque abandalha um livro com o seu quê de sentimentalista e muito pouco pretensioso. Enfim, valeu pelo livro, perdeu pelo aleijão. 

Desmoronamento

Depois da independência da Índia, à meia-noite do dia 15 de Agosto de 1947, Portugal tomou uma posição dura e inclemente quanto à cedência dos seus territórios agora reclamados pelo primeiro-ministro do novo país, o pandita Jawaharlal Nehru. Isto em contrário à posição francesa, por exemplo, que abriu mão das cidades de Pondichéry, Karikal e Yanaon, na Costa do Coromandel, de Mahé, na Costa do Malabar, e Chandernagor, em Bengala. Fascinante como nos recreios das minhas aulas da escola primária ainda houvesse quem usasse a palavra pandita (que significa um sábio, um professor, um profundo conhecedor das mais diversas matérias) como um insulto, tal a forma como a situação da Índia Portuguesa era tratada pelos meios de comunicação. «És um estúpido!», gritava um. E logo o outro, sem se deixar ficar para trás: «E tu és um pandita! Ora toma!». Pobre Jawaharlal, quem o mandava ser pandita.

A teimosia do governo português, absolutamente anacrónica e incapaz de abrir portas ao diálogo, acabou por fazer com que as relações entre os dois países chegassem ao ponto de conflito, embora fosse ridículo, ou mesmo grotesco, querer fazer frente a um numerosíssimo exército indiano com meia-dúzia de gatos-pingados e ainda menos alferes milicianos. A reclamação do novo Estado da Índia por parte do governo de Nehru chegou mesmo à Assembleia Geral das Nações Unidas com a grande maioria a dar razão à causa indiana. Ainda assim, Lisboa disse não e bateu com o pé no chão como uma varina irritada de mão à cintura. Para António Oliveira Salazar, Goa, Damão, Diu, Dadrá e Nagar-Haveli (bem como a ilha de Angediva) eram tão territórios portugueses como o Minho, Angola ou Timor e, como tal, inseparáveis da mãe-pátria. O frente a frente durou vários anos e há que convir que a paciência dos indianos ultrapassou a barreira de todos os limites. Apesar de tudo, não queriam ser eles a tomar uma posição beligerante. Mas jogaram um trunfo muito interessante limitando-se a proibir, a partir de 1954, a transação de pessoas e bens entre Dadrá e Nagar-Haveli, como já vimos enclaves separados um do outro por uma estreitíssima faixa de território na posse da União Indiana. 

Venham daí chatices!

Os sarilhos começaram. Portugal jogou mão de todos os artifícios diplomáticos e de Direito. Neste caso o direito de passagem que existia há centenas de anos. Sem contacto por terra entre os dois enclaves e também sem contacto com Damão e Diu, a escassa população totalmente portuguesa (e na sua maioria militares) caía num estado de solidão devastador. A última esperança portuguesa era o Tribunal Internacional de Haia, a única entidade capaz de dirimir casos de direito internacional como este. Salazar orgulhava-se de Portugal poder erguer a sua voz no centro da Europa lançando-se numa campanha de diabolização do governo de Nehru e insistindo no direito à posse dos territórios a devido tempo ocupados. Falava contra uma parede de silêncio. Ainda havia senhores aprumados a trocar filosofias em Haia e já a Índia tinha invadido Dadrá e Naga-Haveli (Dadrá foi libertada, segundo a expressão politicamente correta usada pelos indianos na noite de 22 de Julho e Nagar-Haveli 15 dias mais tarde, a 11 de Agosto) sem qualquer resistência. Muitas eram as organizações para políticas surgidas entretanto e que se levantaram contra o domínio português, por exemplo, a Frente Unida dos Goeses (FUG), a Organização do Movimento de Libertação Nacional (OMLN), a Organização Nacional dos Voluntários (Rashtriya Swayamsevak Sangh; RSS) e o Exército Livre de Goa (Azad Gomantak Dal; AGD). Ou seja, despacharam com uma perna às costas as parcas forças militares portuguesas aí estacionadas.

Passamos para o Verão de 1961. E Portugal gritava vitória de tal ordem que se podia ouvir em todos os cantos do mundo. O Tribunal de Haia decidiu contra a União Indiana considerando ilegal tanto o bloqueio dos enclaves como a sua consequente invasão e condenando a Índia a devolvê-los. Talvez os indianos estivessem a falar todos ao mesmo tempo e imagina-se o ruído que coisa como essa provocaria, mas a verdade é que Nehru fez ouvidos moucos às decisões de Haia. Pior um pouco. Aborrecido com o desplante, em Dezembro de 1961, ordenou a invasão do que restava do dourado império português na Índia: Goa, Damão e Diu. Um ano mais tarde completava a tarefa juntando-lhes a Ilha de Angediva. Desde sempre que os portugueses resolveram praticamente ignorar Dadrá e Nagar-Haveli. A verdade é que economicamente são dois pedaços de Índia tão desinteressantes que nunca chegaram a ter uma verdadeira força armada para vigiar as suas fronteiras. Embora, até 1974, os enclaves continuassem a ser marcados naqueles grandes mapa-mundi que estavam em todas as salas de aula ao lado das fotografias do Excelentíssimo Presidente do Conselho e do Excelentíssimo Senhor Primeiro-Ministro. Só Goa, Damão e Diu vinham à baila como exemplos da nossa histórica vocação colonial. Tinham-se passado doze anos sobre a queda de Goa mas os alunos tinham de fazer como os três macacos: tapar os olhos, tapar os ouvidos e tapar a boca. Sobretudo a boca, não fosse alguém deixar cair qualquer frase menos conveniente do género: «Ó professor desculpe lá, mas porque é que temos de aprender a geografia a hidrografia e as vias rodoviárias e ferroviárias de lugares que só são portugueses na imaginação pouco fértil de meia-dúzia? E se nos limitássemos à realidade?». É que já não era fácil decorar as estações de caminho-de-ferro de Lourenço Marques à Beira, de Luanda a Malange, e quanto media o ponto mais alto de Portugal, os tais 2963 metros de altitude do Pico Ramelau na tão distante ilha de Timor. 

 Quase insignificantes

Não resumamos, no entanto, a existência de Dadrá e Nagar-Haveli aos pormenores resultantes do conflito entre a Índia e Portugal. Até porque são ambos territórios aprazíveis de uma zona rural que fervilha de plantas e na qual a agricultura serve para o sustento dos seus cidadãos. Pois, porque essa imagem miserável de uma Índia miserável continua a ser uma espécie de universo que os indianos, todos eles, têm de carregar sobre os ombros. A miséria da Índia, a miséria das doenças e da fome, das crianças que retouçam sobre excrementos ao longo de rios estagnados ou linhas de comboios, é essencialmente urbana e instalou-se há anos a fio nos gigantescos subúrbios das grandes cidades muitas delas hoje invadidas por uma emigração ilegal de milhões de pessoas para as quais não parece haver ofício nem local para dormir.

Mas, se chegarem à Índia e perguntarem o caminho para Dadrá ou para Nagar-Haveli não se espantem por a maior parte (ou a totalidade) dos inquiridos encolher os ombros e seguir o seu caminho. De facto é uma região praticamente insignificante na fronteira entre os Estados de Gujarat e Maharashtra e, se ainda temos alguma curiosidade sobre ela, ela vem certamente do tempo da velha palmatória. Por cá o povo está-se nas tintas para Dadrá e Nagar-Haveli a menos que viva por lá, ou seja, cerca de 220 mil habitantes espalhados por uma área total de 487 km2, a toluca que leva o seu nome. 487 km num país que tem nada menos de 3 287 000 km² é de precisar de uma lupa, ou um microscópio. 220 mil pessoas num território que aglomera já bem mais do que mil milhões de habitantes é assunto para ser discutido no intervalo da missa, algo que Dadrá e Nagar-Haveli ainda vão tendo já que por lá se deixaram ficar algumas almas católicas-apostólicas-romanas.

O mar não fica longe, apenas a cerca de 25km para Oeste, volta e meia sopra uma brisa por entre as folhas das acácias ou das palmeiras, a vida vive-se segundo os ritos também da pesca à rede praticada no Damanganga, o rio que vem lá do norte para desaguar no mar Arábico, no Golfo de Khambat que atrai um número razoável de turistas, embora mais indianos do que propriamente estrangeiros. Diu a uma ilha que está ali, como se boiasse, no meio do golfo e tem uma característica fundamental para os hindus e muçulmanos que estão aflitos por uma noite de farra, é alcohol-free, cada um bebe o que quer e quanto quer, muitos são os gujaratis e mahratis que chegam às sextas à noite de propósito e por aí ficam até irem acalmar a ressaca na segunda-feira, nos escritórios de Silvassá ou de Khanvel, as duas maiores cidades do Nagal-Haveli, essa espécie de irmão grande de Dadrá, escritório de tudo e mais um par de botas, na Índia amam a burocracia, na Índia não há nada que se faça sem papel carimbado e em triplicado a menos que se puxe uma carroça de bois para abrir as valas nas quais despejar a água que irá fazer medrar o arroz. Como dizia Henry Michaux: «Na Índia não há nada para ver! É tudo para interpretar!». Até a quase-inexistência de dois enclaves que tiveram a sua importância considerável na queda do já então decrépito Império Português.