por Miguel Nunes Silva
Diretor do Instituto Trezeno, membro da Assembleia de Freguesia de Oeiras, Consultor
Na famosíssima série britânica Yes, Minister, o tecnocrata ministerial Sir Humphrey explicava a ética burocrata declarando que havia trabalhado para 11 governos em 30 anos: «Se tivesse tido fé em todas as suas políticas, teria estado convictamente determinado em mantermo-nos à margem do Mercado Único, e convictamente determinado em aderir. Teria estado plenamente convencido da validade de nacionalizar a indústria do aço, de a privatizar e de a renacionalizar. Na pena de morte, teria sido um fervoroso defensor e um decidido abolicionista. Teria sido um Keynesiano e um apoiante de Friedman, um defensor da escola pública e um desmantelador da mesma, um lunático das nacionalizações e um maníaco das privatizações; mas sobretudo, eu teria sido um desequilibrado delirante e alucinado esquizofrénico».
A deontologia do funcionalismo público assenta em valores e numa socialização institucionais que são suposto exigir dos seus agentes, uma estrita neutralidade normativa relativamente aos assuntos governamentais ou de Estado, em mãos. O contraste é absoluto com regimes totalitários ou repúblicas das bananas, aonde, quer por politização da sociedade ou por máfia clientelista, a função pública é uma mera extensão do Governo no poder. Em vez de neutralidade funcional, sistemas corruptos exigem convicção declarada para empossarem agentes governamentais nas suas funções institucionais.
Por outras palavras, os funcionários públicos têm direito a expressar reivindicações corporativas laborais mas não políticas e nunca ideológicas. Para terem direito a gerir tópicos políticos sem obterem legitimidade política, devem-se abster de tomar partido pelas opções dos governos em funções. Num Estado de Direito, isto garante, a todos os agentes político-partidários, a integridade do processo eleitoral assim como a disponibilidade da função pública para servir lealmente qualquer modalidade partidária de governo no poder.
No caso do sistema judicial, este ónus de neutralidade institucional, garante, adicionalmente, o respeito pelo princípio da separação de poderes. Porém, os últimos anos têm demonstrado uma deterioração cada vez mais acelerada deste valor essencial da democracia e da governabilidade.
No Reino Unido, o Supremo Tribunal já peca de raiz por consistir numa fabricação política do Partido Trabalhista, em vigor desde 2009, e sem qualquer tradição legal que o justifique – algo ainda mais gravoso tendo em conta que o Direito anglo-saxónico é consuetudinário. Mas como se isso não bastasse, os juízes têm-se recorrentemente pronunciado sobre matéria política de forma ativista: em 2019, o Supremo Tribunal pronunciou-se, arbitrariamente, a respeito da Suspensão Parlamentar, arrogando-se uma jurisdição que não possui pois o mecanismo da suspensão parlamentar é uma prerrogativa do Parlamento e não dos tribunais. O instituir de um sistema de leis anti-blasfémia é igualmente preocupante e uma aberração jurídica, tendo em conta que o país que inventou a Speakers Corner, agora persegue a população por ‘crimes de ódio’ verbais.
Nos EUA o problema é ainda maior. Recentemente tivemos o caso da abolição da Decisão Roe Vs Wade do Supremo Tribunal (SCOTUS) que ao fim de décadas veio corrigir uma decisão causada pela politização do SCOTUS por parte de administrações de esquerda na Casa Branca. Em causa estava o direito a instituir medidas antiaborto, que o SCOTUS interpretava como inconstitucionais e que impedia que metade das legislaturas estaduais norte-americanas ilegalizassem o aborto. Esta decisão de 1973 era perfeitamente absurda tendo em conta que a constituição dos EUA, redigida no séc. XVIII, não continha qualquer referência à matéria do aborto e que, por conseguinte, era patente a falta de jurisdição do SCOTUS para se pronunciar sobre a matéria, quanto mais forçar federalmente medidas facciosas. Mas demorou quase meio século a corrigir o problema e só depois da eleição de um presidente antissistema como foi Donald Trump. Mais grave foi a subversão inédita de que a administração Trump foi alvo, com a saliente falta de cooperação da tecnocracia federal, sistematicamente orquestrando fugas de informação e tentando fornecer material de ataque aos media e à oposição política do Presidente – para mais, com acusações gravíssimas desprovidas de mérito. O cúmulo foi a desobediência e o logro ao Presidente por parte dos Estados-Maiores militares e dos diplomatas a respeito das operações na Síria.
Em circunstâncias em tudo paralelas, O Supremo Tribunal Federal no Brasil, levou a cabo uma campanha ativista com o governo de Jair Messias Bolsonaro, ao longo do seu mandato, com numerosos exemplos de abuso de poder e extravasão de competências, ordenando inclusive a prisão de jornalistas favoráveis a Bolsonaro.
Ao nível comunitário, a autoridade dos tribunais nacionais está sob ataque sistemático e deliberado da eurocracia. Para além de comentários públicos de alguns juízes afirmando o seu ‘sentido de missão’ de incrementar a integração europeia, é público que existe uma comunidade de advogados e juristas com lealdades supranacionalistas empregados pela Comissão Europeia ou membros da Federação Internacional de Direito Europeu, que artificialmente leva ao Tribunal Europeu de Justiça casos com o intuito enviesado de estabelecer precedentes que fortaleçam as competências futuras das instituições europeias, e cujos juízos eles se encarregam de publicitar ao máximo nas publicações científicas internacionais de Direito (Festschriften); assim influenciando o debate académico. Isto é tanto mais grave tendo em conta que enquanto funcionários públicos pagos com o dinheiro dos contribuintes e com um dever de isenção, eles procedem uma absoluta violação do código de ética e subvertem o sistema democrático, no processo.
Esta tendência tem vindo a contaminar Portugal, igualmente, com o caso da família Mesquita Guimarães sendo o mais escabroso. Como exemplo da politização dos tribunais, o Governo chegou ao cúmulo de denunciar a família à Segurança Social como forma de intimidação, para que a possibilidade de retirada da guarda parental dos filhos fosse colocada, e os pais anuíssem às aulas de ‘cidadania’. O tribunal de Famalicão acabou por arquivar o processo e fê-lo sob pressão da atenção mediática que a família e os seus apoiantes conseguiram mobilizar para a porta do tribunal mas se este Governo é recompensado por esta brutalidade kafkiana com uma maioria absoluta, há que indagar quantas outras famílias cederam à pressão ou cederão no futuro.
O ativismo judicial deve ser lido como um barómetro da integridade das instituições: quando o ativismo cresce, a credibilidade e sustentabilidade institucional diminui de forma inversamente proporcional. Não deve ser novidade para ninguém que os regimes ocidentais estão gastos e são cada vez menos fiáveis. Todas as áreas de governação apresentam disfunção crónica, desde as derrotas militares à bancarrota financeira. O mais preocupante é qual será a reação da elite ocidental que ainda mantém a fé no ‘fim da História’ neoliberal de Fukuyama. A julgar pela degradação do sistema, a reação não será nem racional nem pacífica.