por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora
Li no Nascer do SOL de 31 de Março, numa notícia sobre o desfecho da II Cimeira para a Democracia, que uma «recessão democrática» acometeu o mundo desde 2015. Ignoro se esta data é exacta, mas é certo que há muitos anos que a democracia padece de várias maleitas que lhe retiram valor e apreço. Aliás, a simples realização da dita cimeira, uma iniciativa de Joe Biden, empenhado em «renovar a democracia nos Estados Unidos e no mundo», revela que é mau o diagnóstico que Biden faz do estado de saúde da democracia no presente. É um facto que, de há bastante tempo a esta parte, vários estados optaram por regimes ‘iliberais’ e fazem muito pouco ou nenhum caso da democracia; as populações aplaudem, e em muitos casos concedem a sua confiança a governantes desinibidamente autoritários, que julgam mais habilitados para resolver os seus problemas concretos do que o falatório parlamentar pelo qual passam todas as decisões importantes nos clássicos regimes democráticos.
Participaram na referida Cimeira para a Democracia nada mais do que cerca de 120 Estados e vários representantes da sociedade civil. A primeira destas Cimeiras não teve resultados práticos, como seria de esperar: produziu mais de setecentas resoluções, que ficaram no papel e arquivadas em lugar incerto. No entanto, desta vez Biden disponibilizou 690 milhões de dólares para financiar várias iniciativas que contribuíssem para a «renovação da democracia». É quase patético: as iniciativas não vão contribuir para nada de substancial, mas vão contribuir, e muito, para vária gente enriquecer ilegitimamente.
Escreve-se ainda no Nascer do SOL que «um dos obstáculos à eficácia, simbólica e política, da cimeira prende-se com a indefinição do conceito de democracia». Talvez, mas é lamentável termos chegado a esta desorientação conceptual. Democracia é um regime político em que o povo governa através dos seus eleitos reunidos num Parlamento, perante o qual o poder executivo é responsável. Tão simples quanto isto, mas no plano teórico, claro está. Na prática, as coisas passam-se de forma bem diferente.
Olhando cá para dentro, para o nosso quintal, o que vemos ?
Não se pode dizer que tenha havido uma generalizada rejeição da globalização; nem um regresso a qualquer nacionalismo agressivo que nos leve a olhar de viés para a comunidade internacional. Pelo contrário: continuamos bem ancorados na UE, de quem dependemos vitalmente. Como dizia Eduardo Lourenço, «Portugal salva-se se a Europa se salvar». Também não temos uma crise de desemprego, que tem sido e continua baixo. Temos agora a crise da inflacção e da habitação, mas são demasiado recentes para justificar o desapego à democracia que se nota há bastantes anos. E quanto à imigração, mau grado a gritaria do Chega, não me parece que tenha introduzido na sociedade portuguesa qualquer fractura susceptível de minar gravemente a sua coesão.
Há duas razões principais que explicam o desapontamento democrático. A primeira é de ordem muito rasteirinha. Desde meados da primeira década de 2000; desde a formidável crise financeira de 2007/8, que os governos tiveram de puxar os cordões à bolsa. Em Portugal isso foi particularmente exigente porque a crise mundial coincidiu com a nossa bancarrota, de que fomos salvos pela Europa com condições muito duras. Passos Coelho libertou-nos do programa da troika ‘oferecendo-nos’ uma saída limpa, uma lança em África que lhe permitiu ganhar as eleições em 2015. Desde então, e bem, as ‘contas certas’ tornaram-se um dogma da política financeira tanto da ‘geringonça’ como do actual governo de maioria absoluta socialista. Só que as ‘contas certas’ limitam a capacidade de assistência financeira dos governos: não há dinheiro! E uma democracia que não dá dinheiro não presta. Ou não há dinheiro suficiente para acudir a todas as necessidades, ao passo que os políticos e respectivas clientelas enchem a barriga. Esta percepção, que é geral, descredibiliza a democracia.
Finalmente, existe um problema tão insolúvel como a escassez de meios financeiros. O povo, portanto os eleitores, não se reconhecem nos discursos oficiais, que exaltam o nosso sucesso financeiro mas não lhe enchem os bolsos. A percepção generalizada é de que os políticos e as ‘elites’ vivem num mundo aparte, endinheirado e confortável, segregado do mundo dos pobres e carenciados. Entre estes e aqueles, cavou-se um fosso. O que significa que o eleitor não vê qual seja a utilidade do seu voto. Este fosso, sim, é fatal para a democracia.