Por Octávio Rebelo da Costa
O Dalai Lama é uma figura emblemática do budismo tibetano, conhecido mundialmente como um líder espiritual e político. O seu nome verdadeiro é Tenzin Gyatso, e ele nasceu em 6 de julho de 1935, numa pequena vila chamada Taktser, localizada na região do Tibete, na China. Aos mais curiosos sobre a vida do 14º Dalai Lama, e este processo de seleção, recomendo o filme biográfico Kundun.
Desde tenra idade, o jovem Tenzin Gyatso mostrou sinais de ser uma criança especial. Aos dois anos, foi identificado como a reencarnação do 13º Dalai Lama, líder espiritual do Tibete, e foi transportado ao mosteiro de Potala para começar sua educação religiosa e política. Aos 15 anos, em 1950, ele foi oficialmente entronado como o 14º Dalai Lama e assumiu a liderança do governo tibetano em um momento de crescente tensão com a China comunista, que havia ocupado o Tibete.
A crescente e forçada presença chinesa no Tibete, bem como as suas políticas repressivas, levaram a uma série de protestos populares. No entanto, as tentativas do Dalai Lama de alcançar uma solução pacífica e negociada com a China foram em vão. Em 1959, a situação torna-se insustentável, e o Dalai Lama foi forçado a fugir do Tibete.
Acompanhado por um pequeno grupo de seguidores e disfarçado de soldado chinês, ele cruzou as montanhas do Himalaia a pé, enfrentando o frio implacável, a fome e o risco de ataques das forças chinesas. Depois de várias semanas de viagem extenuante, o Dalai Lama e seus seguidores finalmente chegaram à Índia, onde foram acolhidos e receberam asilo político pelo governo indiano.
Desde então, Dharamsala, uma pequena cidade nas montanhas do norte da Índia, tornou-se a residência oficial do Dalai Lama e o centro do governo tibetano no exílio. Lá, o Dalai Lama continuou a promover a causa do Tibete e a promover a autonomia cultural e religiosa dos tibetanos. Ele também se dedicou a promover a paz mundial, o diálogo inter-religioso, a educação e os valores humanitários em todo o mundo.
Apesar das adversidades, o Dalai Lama é conhecido por sua sabedoria, compaixão e mensagem de não violência. Ele se tornou uma figura inspiradora para muitos, não apenas para os tibetanos, mas também para pessoas de diferentes culturas e religiões ao redor do mundo. A sua história de coragem, perseverança e dedicação à paz e aos direitos humanos é um exemplo notável de liderança espiritual e política.
Um vídeo que tem circulado nas rede sociais, mostra um encontro recente em que um jovem pediu ao Dalai Lama se podia abraçá-lo. O incidente ocorreu durante uma interação em 28 de fevereiro num evento em McLeod Ganj, um subúrbio de Dharamshala. Segundo o The Guardian, cerca de 100 estudantes estavam presentes no evento, que foi organizado num templo.
Um dos estudantes presentes perguntou ao Dalai Lama, com um microfone, se podia abraçá-lo. O líder de 87 anos pediu ao menino para subir ao palco onde estava sentado.
Quando o monge se inclinou para cumprimentá-lo, colocou a língua para fora, enquanto a encostava a testa na do menino, e pediu para a criança chupá-la, conforme relatado pela comunicação social.
O vídeo foi gravado por um dos presentes e acumulou mais de 1 milhão de visualizações. É muito fácil julgar, sem prurido, e etiquetar tal comportamento como nojento e absolutamente doentio.
Mas e se olharmos para este episódio com uma lente mais objetiva. De acordo com um artigo da BBC de 2014, mostrar a língua pode ser considerado rude, mas no Tibete, é uma forma de cumprimento. É uma tradição seguida pelo povo tibetano desde o nono século, quando a região era governada por Lang Drama, que era conhecido por ter uma língua preta, segundo os média.
Após a morte do rei, os habitantes locais começaram a mostrar suas línguas quando solicitados para confirmar que não eram como ele (ou a sua reencarnação).
O Instituto de Estudos do Leste Asiático, da Universidade da Califórnia, Berkeley, também menciona isso noutro artigo de 2014. O instituto afirma que mostrar a língua é um sinal de respeito ou concordância e era frequentemente usado como cumprimento na cultura tradicional tibetana.
Talvez a referência cultural ocidental mais famosa dessa tradição seja o filme Sete Anos no Tibete, com Brad Pitt, onde o personagem de Pitt encontra um grupo de crianças que lhe mostram a língua como cumprimento.
Não estou aqui para defender ninguém, apenas para abrir o espectro sobre este assunto.
Aliás, quem sou eu para o defender, quando o próprio líder do budismo tibetano não fez qualquer referência às tradições tibetanas na sua própria declaração após o incidente, onde se desculpou publicamente com o menino e a sua família e disse que “lamenta o incidente”.
“O Dalai Lama costuma provocar as pessoas que conhece de maneira inocente e divertida”, disse o comunicado.
Curiosamente, este pico de interesse na personalidade, seja nas redes sociais ou na comunicação social, nunca foi acompanhada com o estado do Tibete, dos tibetanos ou da liberdade religiosa de quem lá pratica o budismo.
Sob o Partido Comunista Chinês, ninguém é livre.
No entanto, os tibetanos têm menos direitos civis e políticos do que a maioria. Desde a vigilância em massa da polícia nas movimentadas ruas de Lhasa até à frequente tortura que ocorre nos centros de detenção secretos do Tibete. Todos os dias o governo chinês sujeita os tibetanos a um sufocante controlo de todos os aspetos da sua vida, sem problemas em recorrer ao uso da violência.
Todos os aspetos da vida tibetana estão sob cerco. Dissidência, protesto ou mesmo desejar um feliz aniversário ao Dalai Lama ou ter uma bandeira tibetana no telemóvel é crime. Os tibetanos têm que se autocensurar para evitar a certissima prisão e tortura.
Ainda hoje, em 2023, protestos pacíficos são reprimidos com violência severa. Manifestantes são presos, torturados e até mesmo mortos a tiros. A China tem repetidamente violado as convenções da ONU através do uso extensivo de tortura contra prisioneiros políticos tibetanos. As prisões no Tibete estão cheias de pessoas detidas simplesmente por expressarem o seu desejo de liberdade. São presas e condenadas por atos pacíficos, como acenar a bandeira tibetana, pedir o retorno do Dalai Lama e enviar informações sobre eventos no Tibete para o exterior.
Muitos tibetanos são presos por acusações não especificas e sem julgamento, e as suas famílias são alienadas do seu paradeiro. É negado o acesso a apoio jurídico adequado e enfrentam julgamentos (quando os há) que não respeitam os padrões internacionais de justiça.
Tibetanos acusados de "separatismo" (atos destinados a dividir ou prejudicar o estado chinês) podem enfrentar penas que incluem a morte. Isto estende-se a crianças.
O Partido Comunista Chinês tentou apagar o Dalai Lama do Tibete. Possuir imagens do Dalai Lama ou mencioná-lo em público pode resultar em prisão, tortura e morte. Não só no Tibete, mas em toda a China, escritores, cantores, artistas e professores são presos por celebrarem a identidade nacional tibetana e por qualquer crítica ao governo chinês.
Mas nada disto interessa, ou interessa menos às redes sociais. É mais fácil reduzir a vida de um homem a um momento, e um problema humanitário internacional, que desde sempre foi varrido para debaixo do tapete, a um problema que não é nosso. Podemos assumir e criticar os erros do líder espiritual com facilidade, nojo e escárnio, mas não o podemos receber. Esta dicotomia chama-se medo da China, e respeitinho.
Em 2007, Dalai Lama veio a Portugal, mas não foi recebido por nenhum chefe de Estado.
Luis Amado, ministro dos negócios estrangeiros à data, referiu: – "Oficialmente, Dalai Lama não é recebido por responsáveis do Governo português", acrescentando um categórico: "Como é óbvio." Um "óbvio" que não explicou, argumentando apenas com as "razões que são conhecidas".
As "razões que são conhecidas" são o facto de a China, potência administrante do Tibete, não reconhecer as pretensões do Dalai Lama, líder espiritual dos budistas tibetanos, para a independência do território.
Esta incursão parlamentar do líder tibetano contrasta com a que não ocorreu em 2001, quando visitou Portugal pela primeira vez. Almeida Santos, então presidente da AR, não lhe permitiu a entrada no edifício. Os deputados que com ele quiseram reunir promoveram um encontro num hotel. Sampaio, então Presidente da República, não o recebeu oficialmente.
Novamente, e para concluir, não estou a isentar ninguém, mas as crianças tibetanas, também são crianças.