A saga dos Anjos de Caras Sujas

Maschio, Angelillo e Sivori foram caçados pelos clubes italianos depois da vitória na Copa América de 1957 – eram os Carasucias.

Michael Curtiz nasceu em Budapeste com o nome de Manó Kertész Kaminer. Um tipo inquieto, pode dizer-se. Contava histórias sobre si próprio que nunca foram confirmadas pela realidade dos factos. Que tinha fugido de casa ainda garoto, por exemplo, para se juntar a um circo e tentar a carreira de trapezista. Ou que tinha feito parte da equipa de esgrima da Hungria que disputara os Jogos Olímpicos de 1912, em Estocolmo. Pequenas mentiras com que entretinha os amigos e compunha um currículo um pouco mais excitante do que aquele que possuía, embora o simples facto de ter combatido na I Grande Guerra como soldado de artilharia do exército austro-húngaro já chegasse e sobrasse para poder puxar dos galões. Apaixonado pelo cinema, tornou-se um realizador de renome em Viena até que Jack Warner o contratou para os seus estúdios em Hollywood onde assinou mais de trinta películas, a mais marcante das quais Casablanca, em 1942, com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Só Casablanca teria bastado para o deixar para sempre amarrado à gloriosa história do cinema mas Curtiz, que por pirraça, assinava com os mais variados nomes que conseguia compor com as letras do nome original – Michael Courtice, Michael Kertesz, Mihaly Kertesz, Michael Kertész, Mihály Kertész, Kertész Mihály e etc. – também tenha realizado Angels With Dirty Faces, em 1938, com James Cagney e Humphrey Bogart, a história de dois miúdos nascidos no mesmo bairro violento de Nova Iorque, com um a seguir a vida de padre e o outro a transformar-se num gangster sem escrúpulos.

Durante vários anos, Angels With Dirty Faces caiu no esquecimento até que, por causa do Campeonato Sul Americano de 1957, cinco jovens que formavam a linha avançada da Argentina, Corbatta, Maschio, Angelillo, Sívori y Cruz (com Sanfillipo a cumprir também o seu papel), fizeram com que um jornalista cujo nome a história não guardou, resolvesse recordar-se de Michael Curtiz e chamar ao grupo Los Carasucias. Inequivocamente tratavam-se de miúdos com um descaramento divino. E trataram abaixo de cão todos os adversários que lhes passaram pela frente, a começar pela Colômbia (8-2), seguindo-se o Equador (3-0), o Uruguai (4-0), o Chile (6-2) e o Brasil que viria a ser campeão do mundo um ano mais tarde (3-0). O nome pegou. E mal o torneio chegou ao fim, os clubes italianos, que nadavam em dinheiro, lançaram-se literalmente à caça de reforços entre eles. Maschio seguiu para Bolonha. Angelillo foi contratado pelo Inter. Sivori ganhou aura de grande estrela da Juventus. Os três levaram consigo para o calcio a alcunha inconfundível: Gli Angeli Della Faccia Sporca.

 

Na Argentina, onde tinham ganho o cognome com carinho, passaram a ser carasucias no mau sentido pois desistiram também de jogar pela seleção do seu país para se naturalizarem italianos e vestirem a maglia azzurra. Por seu lado, o público italiano devotava uma adoração completa aos seus argentinos já que muitos outros se seguiram a Maschio, Angelillo e Sivori. Uma capa espampanante da revista Calcio Ilustrato juntou Omar Sivori com Antonio Valentin Angelillo. E berrou na manchete: «Artisti e calciatori – il gioco degli argentini scattena le multitudine!» Mas a vida não correu bem a todos, sobretudo a Angelillo que teve o desplante de cometer um crime de coração e apaixonar-se por uma loira calipígia de nome de batismo Atillia Tirone e Ilya Lopez de apelido de palco.

 

Atillia era uma daquelas italianas à Sophia Loren, capaz de tirar o fôlego a qualquer romântico profissional como era o caso de Angelillo. Passaram a ser inevitáveis e indivisíveis. Onde estava um estava o outro e onde estava o outro estava o um. Quem não gostou da paixão shakespeariana foi um trombalazana chamado Helenio Herrera, também argentino, um fanático do cattenacio, treinador do Inter que deu ordens para que dois ou três esbirros lhe fizessem relatórios sobre a vida amorosa do Anjo da Cara Suja. Acusou-o de passar demasiadas noites nos cabarés nos quais Ilya Lopez atuava e, dono de um insuportável mau feitio, também embirrou com a pinta de ator de Hollywood de Antonio a quem alguns adeptos tinham passado a chamar de Cary Grant n.º 9. Herrera era o homem de mão de Angelo Moratti, magnata do petróleo, e fazia tudo o que queria e lhe apetecia no clube. Tratou de despachar Angelillo desfazendo a personalidade do rapaz numa imprensa que também dominava com mestria. O destino marcou-lhe o caminho da Roma e, em seguida, do Milan. Os 81 golos que marcara nos três anos em que vestiu a camisola azul e preta não serviram para alterar a ideia de Herrera. Não tinha simpatia por jogadores com pinta de estrelas de cinema. Mesmo que tivessem a alcunha de Cara Suja.