A experiência da Páscoa feita pelos judeus é uma das experiências mais incríveis da história da humanidade. A Páscoa judaica reporta a uma experiência coletiva, a uma experiência de escravidão e, ao mesmo tempo, a uma experiência de libertação. Eram arameus errantes, escravos do Faraó no Egito, mas apareceu Deus, ao fim de quatrocentos anos e enviou um libertador – Moisés. A Páscoa evoca, assim, uma experiência de passagem da escravidão à libertação coletiva.
Esta experiência que os judeus fizeram sob o domínio dos egípcios, segundo o Livro do Êxodo e do Deuteronómio, mas também cantado em muitos salmos, é uma experiência paradigmática de todos e de cada um dos homens. Trata-se de uma experiência de tensão entre a escravidão e liberdade… entre a servidão e o domínio.
Não tenho a menor dúvida de que todos os homens que lerem o livro do Êxodo ou, pelo menos, virem o célebre filme de “Os dez mandamentos” poderão entrar dentro dessa mesma experiência a partir da sua própria existência.
Não há dúvida que todos nós nos sentimos, de certa forma, amarrados, aprisionados, escravizados por inúmeras experiências e situações da nossa vida. Quantos de nós não desejámos já, algum dia, que aparecesse um Harry Potter qualquer para fazer desaparecer uma doença ou uma situação de desemprego, ou um problema de álcool ou de vícios que nos amarram? Esse Harry Potter, com uma varinha mágica, idealizado pelas crianças, que tem o poder de nos transportar para um domínio da física é, no fundo, o que todos os homens procuram na libertação e superação de si mesmos.
Se é verdade que, muitas vezes, nos sentimos escravizados, também é verdade que muitas vezes nos sentimos dominadores ou, no dizer de Nietzsche, com uma «vontade de poder». O mundo está cheio de escravos e de escravidões, mas, ao mesmo tempo, está cheio de dominadores e de faraós. Provavelmente todos sentimos dentro de nós as nossas próprias escravidões e ao mesmo tempo a nossa vontade domínio sobre os outros.
Esta tensão que existe entre o que domina e a coisa que é dominada existe, substancialmente, em todos os homens e todos nós experimentamos essa mesma tensão ou simultaneamente ou em diferentes momentos da nossa vida. O prólogo de São João dá-nos uma via que nos liberta das nossas escravidões de servidão ou daquela outra escravidão de domínio. São João diz que «no princípio era o ‘logos’ – isto é, a ‘razão’ – e a ‘razão’ estava com Deus e a ‘razão’ era Deus. Tudo foi feito por meio da ‘razão’ e sem a ‘razão’ nada foi criado» (Jo 1, 1).
‘Razão’ será uma tradução livre da palavra grega, usada por São João, que é muitas vezes traduzida por ‘palavra’ – ‘no princípio era a palavra’… A ‘palavra’, isto é, o ‘discurso’, será o ponto de encontro, de libertação de todos e de qualquer um que, querendo libertar-se das amarras das suas escravidões da vontade de poder, entra num processo de diálogo. Só desta forma, através do uso da razão, isto é, da palavra, poderemos libertar-nos dos domínios de uns sobre os outros.
Falta-nos, pois, fazer esta Páscoa – isto é, esta passagem – para nos encontrarmos como homens livres, como pensou São João e como os nossos pais das luzes intuíram de forma tão clara. O que temos assistido nos últimos tempos é tão baixo que mais parece tirado de um filme de suspense… todos querem dominar o discurso e ver quem consegue alimentar a sua vontade de poder sobre todos os outros. É triste quando se afasta do nosso horizonte uma perspetiva de diálogo e se começa a construir, aos poucos, um desejo de domínio tão forte como este que vivemos na sociedade portuguesa. É triste quando prescindimos da razão para procurar o domínio dos outros. Isto, sim, é um verdadeiro abuso de poder.