Já foi Berlusconi, já foi um jornalista bon vivant e até já foi um cobrador de ‘taxas’ da máfia. O ator italiano, Toni Servillo, foi um dos convidados da 16ª edição da Festa do Cinema Italiano, a decorrer em várias cidades portuguesas até ao próximo dia 27 de maio.
Em Lisboa, o ator apresentou três trabalhos distintos: a peça de teatro ‘As Vozes de Dante’, uma retrospetiva do filme ‘Um Homem a Mais’ (2001), o primeiro filme de Paolo Sorrentino, que marcou o início de uma longa colaboração entre o ator e o realizador – com filmes como ‘A Grande Beleza’, ‘A Mão de Deus’ ou ‘Il Divo – A Vida Espectacular de Giulio Andreotti’ -, e a sua mais recente longa-metragem, ‘A Estranha Comédia da Vida’, realizado por Roberto Andò.
A LUZ falou com o ator italiano que, com toda a sua simpatia e carisma (e com um charuto no canto da boca), respondeu a questões sobre as diferenças entre atuar para cinema e teatro, sobre as suas colaborações com Sorrentino e se ponderaria ingressar pelo cinema de Hollywood. No final, com o seu bom humor, agradeceu-nos por não termos feito «nenhuma pergunta estúpida».
Entre as várias obras que o Toni Servillo veio apresentar, uma delas é uma peça de teatro, ‘As Vozes de Dante’. Não acha um pouco contraditório representar teatro num Festival de Cinema?
Antes pelo contrário. São duas coisas distintas, a peça sobre Dante é um projeto do Ministério dos Negócios Estrangeiros e uma produção do Piccolo Teatro di Milano, que organizou esta digressão, que já esteve em Praga, agora está em Lisboa e ainda vai passar por locais como Paris, Tóquio e Berlim. Isto apenas vem demonstrar a grandeza deste poeta, Dante Alighieri, que imaginou, há séculos, a Europa unida. A data de Lisboa coincidiu com a Festa do Cinema Italiano, que aproveitou ‘a boleia’ para apresentar dois filmes, ‘Um Homem a Mais’ (2001), o primeiro filme de Paolo Sorrentino, e ‘A Estranha Comédia da Vida’ (2022), um filme de Roberto Andò que vai ter agora a sua estreia em Portugal. Nunca considerei o teatro uma antecâmara para chegar ao sucesso do cinema. Considero as duas artes de forma igual.
É verdade o que se diz sobre os atores sentirem uma maior adrenalina a fazer teatro, comparado com o ato de fazer cinema?
Essa é uma boa pergunta. Eu acredito que sim. O teatro é uma arte que se faz ‘sem rede’, é como andar na corda-bamba sem uma proteção. Quem cai, cai mesmo. Considero que o teatro é a última forma de arte que é baseada num tempo partilhado com o espectador. Há um início, continuação e um fim que é partilhado com o espectador. No cinema é uma experiência diferente porque é possível corrigir os erros. Contudo, isto não quer dizer que não haja adrenalina nesta arte, mas a verdade é que o meu coração bate de uma forma absolutamente única antes de entrar em palco durante uma peça de teatro.
Existe uma preparação diferente quando faz uma peça de teatro em comparação quando faz um filme?
Com certeza, é bastante diferente. Não apenas a preparação, mas também aquilo que é a prática do ator, seja no cinema ou no teatro. O trabalho no cinema é algo que pode demorar oito a dez semanas, por isso, ocupa durante este período, uma parte muito importante da nossa vida, enquanto estamos a encarnar estas personagens. Mas, no teatro, e eu tive a sorte de fazer espetáculos que estiveram ativos durante três ou quatro anos e que percorreram diversas cidades da Europa, portanto, acredito que a peça e a personagem acabam por se misturar com a nossa vida durante muito tempo. É diferente a técnica, mas diria que não se pode resumir a isto, porque há também uma componente muito prática desta arte.
Atualmente, existe um grande debate sobre a legitimidade da atuação de método, praticado por atores como Daniel Day-Lewis. Este método é algo com que se identifica?
Existem muitos métodos. Temos o caso do Constantin Stanislavski, Lee Strasberg, mas penso também em atores europeus como Laurence Olivier ou Marcello Mastroianni, que tinham um método mais intuitivo, de entrega e baseado na imaginação. Ao fim e ao cabo, acredito que cada ator tem o seu método. Alguns refletiram sobre estes métodos, nomeadamente, penso nos casos mais conhecidos e opostos, o supracitado Stanislavski e Bertolt Brecht. Considero que é preciso conhecer aprofundadamente estas reflexões, mas, depois, cada um tem que reelaborar estes conhecimentos de forma a encontrar o seu próprio método. Mas no fundo, o mais importante é cada ator conhecer-se a si próprio para por este conhecimento ao serviço da personagem.
Neste Festival, vai também apresentar o primeiro filme de Paolo Sorrentino e que marca o início da vossa longa colaboração. Porque é que acha que a vossa parelha faz sentido e porque é que voltam constantemente a trabalhar juntos?
É um mistério fascinante, mas que não posso explicar. Gosto que existam algumas perguntas que nos colocam que fiquem sem respostas, mas posso apontar para vários fatores como a amizade, o afeto, a estima mútua… Fizemos um caminho juntos que nos levou até Cannes, aos Óscares. Gosto de pensar que a razão profunda para que esta colaboração funcione é algo misterioso e que não tem resposta.
Participou em diversos filmes de Paolo Sorrentino, mas alguma vez ficou dececionado ou invejoso por não ter participado em algum em específico?
Não diria que é inveja (risos), mas quando escolheu o Michael Caine, um ator que eu adoro, para fazer o papel de Fred Ballinger, em ‘A Juventude’ (2015), onde ele é um maestro, sabendo que a minha grande paixão é a música erudita, aí disse: ‘caramba, podiam ter-me escolhido’.
No ano passado, foi um dos protagonistas de ‘A Mão de Deus’, um filme que fala muito do Maradona e que também explora bastante a relação do personagem principal com o futebol. Como é que viveu a vitória da Argentina no Mundial de 2022?
Eu torci, tal como quase todos os napolitanos, pela Argentina. Fiquei bastante feliz pela vitória.
Qual é a sua relação com o futebol?
Olho para o futebol com simpatia. Gosto deste desporto e do gesto atlético do atletismo. Gosto da adrenalina inerente às partidas. Mas detesto a violência, a estupidez e a violência estúpida que se mistura com a beleza do futebol. Odeio também a facciosidade e o partidarismo que parece estar inevitavelmente associado ao futebol e a cada clube.
Esse filme foi uma produção da Netflix, teria interesse em participar em mais projetos desta plataforma?
Em primeiro lugar, quem teve uma relação mais próxima com a Netflix foi o Paolo Sorrentino. O realizador decidiu que, para fazer este filme tão íntimo, o mais íntimo da sua carreira, diria, precisava de um financiador importante e que lhe garantisse mais liberdade. Eu, se recebesse outra proposta por parte de outro cineasta importante, tal como o Sorrentino, aceitaria. Dito isto, devo dizer que também travo um combate pessoal, tal como outras figuras do cinema, para que os filmes sejam visto nas salas de cinema.
E se fosse uma produção de Hollywood? Aceitaria?
Já não sou um rapazinho (risos) e devo dizer que me sinto muito feliz por ter alcançado este reconhecimento internacional através de filmes profundamente italianos.
Considera que o cinema Europeu está em boa forma?
Sim.
Já confessou no passado ser fã do Manoel de Oliveira. Existe mais algum realizador português que admire? Sim, lembro-me sobretudo de uma visualização no Festival de Cinema de Veneza, de um filme do João César Monteiro, em particular de um filme chamado ‘As Recordações da Casa Amarela’ (1989). Ficámos todos impressionados por este autor tão livre.
E, já que estamos a falar a propósito da Festa do Cinema Italiano, que filmes italianos é que recomendaria a uma geração portuguesa mais jovem e que está a descobrir o cinema deste país?
Não queria deixar ninguém de fora, mas dos nomes que me recordo imediatamente e que posso mencionar são Pietro Marcello ou Leonardo Di Costanzo. Há muitos jovens que vão continuar a ver cinema italiano e a fazer com que este seja falado por todo o mundo.