Por Teresa Nogueira Pinto
Cumpriram-se os primeiros cem dias do terceiro mandato de Lula da Silva. Não sendo ainda certo que ‘o Brasil voltou’, o Petismo está de regresso ao Planalto.
O tempo é pouco, mas as expectativas altas. Numa campanha onde o grande argumento foi o de não ser Bolsonaro, Lula prometeu de tudo, desde democracia, a casas, escolas, creches, estradas, universidades, viagens de avião, e até cerveja e picanha: «Quando é que o povo gosta? É quando eu falo – vamos voltar a reunir a família no domingo e nós vamos fazer um churrasquinho. E nós vamos comer uma fatia de picanha com uma gordurinha passada na farinha e tomar uma boa de uma cerveja gelada. Bicho, o povo entra em delírio», dizia Lula, o candidato.
O Brasil que voltou
No rumo da economia, a mudança é clara. O ‘superministro’ Paulo Guedes, que sobreviveu às turbulências do Governo de Bolsonaro, manteve uma linha clara, embora contestada à esquerda. Em quatro anos, dois marcados pela pandemia, garantiu a autonomia do Banco Central, a reforma da previdência, maior flexibilização do mercado financeiro e o início do processo de privatizações.
Lula prometeu «colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda» e está a substituir esta linha, como era expectável, por uma política de aumento da despesa pública e de impostos, assente na ideia do setor público como motor fundamental do crescimento. A expansão do Estado foi visível logo na dimensão do executivo, que passou de 23 ministérios para 37. O relançamento e reestruturação de programas sociais como o Bolsa Família (que substitui o programa Auxílio Brasil do Governo de Bolsonaro), Mais Médicos ou Minha Casa Minha Vida representou um aumento dos gastos sociais de cerca de 112,1 mil milhões de reais (mais de 20 mil milhões de euros), possibilitado pela aprovação da chamada PEC da Transição.
Outra iniciativa a recuperar é o programa de investimento em infraestruturas. Os Programas de Aceleração do Crescimento lançados nos primeiros mandatos de Lula e continuados por Dilma Rousseff deixaram, segundo auditoria do Tribunal de Contas da União, milhares de obras paradas por todo o país e vários casos de corrupção.
Uma marca destes cem dias foi o choque entre Lula e o Banco Central. Num contexto de inflação persistente, o BC tem defendido prudência, mantendo a Selic em 13.75 por cento. O Presidente contesta a opção, que diz inibir o crescimento. «Nesse país se brigou muito para ter um Banco Central independente, achando que ia melhorar o quê? Eu posso te dizer com a minha experiência, é uma bobagem achar que o presidente do Banco Central independente vai fazer mais do que fez o Banco Central quando o presidente era que indicava», afirmou à GloboNews. Em resposta a Campos Neto, presidente do BC, que defendeu que para atingir uma meta de inflação de 3 por cento, seria necessária uma taxa de juros de 20 por cento, Lula respondeu: «Se a meta está errada, muda-se a meta». A afirmação gerou algum desconforto, lembrando os tempos de Dilma Rousseff quando, num contexto de recessão, a política monetária era condicionada por pressões políticas.
Num contexto de volatilidade internacional e alguma incerteza interna, o arcabouço fiscal proposto pelo ministro Fernando Haddad trouxe tranquilidade. O instrumento visa o aumento da despesa pública, mas mantendo-a vinculada à receita, tentando assegurar previsibilidade (e alguma disciplina) às contas públicas, num difícil equilíbrio entre as generosas promessas de Lula e o imperativo de controlar a dívida.
Já na frente das empresas públicas, onde o historial do PT não é feliz (tendo quase levado ao colapso da Petrobras), o Presidente anunciou a intenção de reverter a privatização da Eletrobras, e o Governo prepara alterações à Lei das Estatais. A lei determina um período de nojo de 36 meses para titulares de cargos políticos exercerem funções de presidência ou direção em empresas públicas. A eliminação deste período representaria um retrocesso em matéria de transparência, mas traria vantagens políticas na forma de cargos passíveis de ser distribuídos.
O Brasil que não volta e o Brasil que não mudou
Muito do que Lula apresentou neste primeiro balanço são programas reciclados dos seus primeiros mandatos. Mas nem o mundo nem o Brasil de hoje se parecem com o mundo e o Brasil de há duas décadas.
Entre 2004 e 2010, a economia brasileira cresceu a uma média anual de 4.5%, graças a um boom de matérias-primas alavancado no crescimento da economia chinesa, à entrada de fluxos de capital e ao aumento do consumo interno, ancorado no aumento do salário mínimo, transferências sociais e acesso ao crédito. Os programas sociais da primeira era Lula, como o Fome Zero ou o Bolsa Família, contribuíram para diminuir índices de pobreza e insegurança alimentar. Mas o Governo não aproveitou este período para implementar reformas estruturais, o que leva alguns economistas a caracterizá-lo como uma «década perdida».
No atual contexto, é pouco provável que estas iniciativas funcionem: a dívida pública deverá representar 88.4% do PIB este ano, segundo o FMI; o crescimento, revisto em baixa pelo Banco Mundial, será de 0.9% e, apesar de alguns sinais positivos, a inflação preocupa. Os mercados têm reagido ao contexto internacional adverso e à incerteza interna: o IBOVESPA, que valorizara 9.18% nos cem primeiros dias de Bolsonaro, registou uma queda acumulada de 8.12% nestes 100 dias, o pior resultado desde 1995.
Para quem via na eleição de Lula uma redenção da forma na política, estes dias também desanimam. Na sua primeira entrevista ao vivo, o Presidente Lula, referia-se assim ao ex-juiz federal e atual Senador Sérgio Moro: «De vez em quando ia um procurador, de sábado ou de semana, para visitar, ver se estava tudo bem. Entravam três ou quatro procuradores, e perguntavam ‘tá tudo bem?’ e [eu respondia] ‘não tá tudo bem, só vai estar bem quando eu f… esse Moro».
Depois da Polícia Federal ter prendido suspeitos de planear o assassínio de Moro, Lula acusou o senador de ter montado «uma armação».
O mundo
O Brasil de Lula não vê o mundo da mesma forma que o Brasil de Bolsonaro, e por isso assistimos a uma alteração no quadro de aliados e adversários.
Na região, Bolsonaro cortou relações diplomáticas com a Venezuela e manteve uma relação tensa com a Argentina; no plano internacional, aproximou-se de Israel e priorizou a relação com Estados Unidos em detrimento da China. Lula, por sua vez, fez a sua primeira viagem à Argentina e restabeleceu relações com a Venezuela. A relação de proximidade política de Lula e do PT com ditadores na América Latina é um dos fatores que incomoda até alguns apoiantes do Presidente.
No plano global, o Presidente, que já foi a Washington e está agora em Pequim, tenta navegar as tensões entre o seu maior investidor e o seu maior parceiro comercial. Aqui pesará a integração nos BRICS, num momento em que o PIB do bloco ultrapassa o do G7. Se forçado a tomar posições, Lula não deverá arriscar as relações com Pequim para defender a ordem internacional liberal.
Que futuro no país do futuro?
As últimas eleições mostram um país geograficamente dividido. Embora Lula tenha uma base de apoio resistente, que tentará manter com as suas políticas sociais, pode não ser suficiente.
Por outro lado, há sinais de que as tensões políticas podem aumentar. Perceções de que se tenta neutralizar Bolsonaro politicamente através da justiça poderão ter efeitos negativos para Lula, lembrando o seu próprio processo que, para muitos brasileiros, não foi concluído. Iniciativas como a Procuradoria de Defesa da Democracia, que visa «combater a desinformação usada como arma política contra os atos públicos», podem ser vistas como tentativas de cooptação do poder e censura, contribuindo para o aumento da mobilização entre opositores do Petismo.
Mas mesmo antes do PT voltar às urnas, Lula precisará de uma base de apoio estável no Congresso para governar. Embora o Presidente tenha experiência em assegurar a lealdade do centrão, o Congresso que saiu das eleições, e onde o PL de Bolsonaro tem a maior bancada, é mais polarizado e mais ideológico. Resta saber se será menos permeável.
* Editado por José Cabrita Saraiva