O filósofo do paladar

O genebrino Jean-Jacques Rousseau deu primazia à satisfação das necessidades básicas; qualquer consumo excessivo levaria à decadência moral e política. 

João Paulo André, Químico

Um estudo recente de uma equipa de arqueólogos portugueses mostrou que os neandertais que habitaram a Arrábida há 90 mil anos já se deliciavam com sapateiras assadas. O prazer da ‘mesa’, já se sabia, é verdadeiramente ancestral – muito anterior ao móvel em questão, que só surgiu por volta de 2500 a.C., no Egito. Quanto a receitas culinárias, datam de há quase 4000 anos as mais antigas que se conhecem, provenientes da Mesopotâmia.

Os antigos gregos foram frugais. Tal como Sócrates – que terá dito «o resto do mundo vive para comer; eu como para viver» –, Epicuro era comedido, alimentando-se de pão e queijo (ao contrário do que faz supor a definição de epicurista como «alguém que se entrega aos prazeres mundanos»). Os romanos, porém, cultivaram a grande mesa, tendo Lucullus ficado mais famoso pelo requinte das suas refeições do que pelas conquistas enquanto general. Séneca, um dos mais brilhantes intelectuais de Roma, ridicularizou os excessos alimentares para denunciar a falta de interesse da sociedade pela filosofia. Já a medieval Santa Catarina de Siena, dada aos êxtases (ou à anorexia), deixou-se morrer de desnutrição. No Renascimento perduraram os ditames clássicos de Galeno sobre uma boa dieta, zeladora do equilíbrio dos quatro humores corporais de Hipócrates. Chegado o Iluminismo, questões como o que significava ser racional na cozinha e à mesa, ou como escolher os alimentos corretos, melhorando a condição física e moral das sociedades, foram pela primeira vez levantadas. O genebrino Jean-Jacques Rousseau deu primazia à satisfação das necessidades básicas; qualquer consumo excessivo levaria à decadência moral e política. No polo oposto, o monarca polaco Estanislau Leszczyski defendeu que sem sofisticação culinária não havia civilização. Por sua vez, o filósofo alemão Immanuel Kant (que apreciava boa comida e bons vinhos mas só fazia uma refeição por dia), considerou o tato, a visão e a audição os sentidos superiores (objetivos), e o olfato e o paladar sentidos inferiores (subjetivos).

Publicada 21 anos após a morte de Kant, Fisiologia do Gosto ou Meditações de Gastronomia Transcendente (1825), do francês Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826), é uma obra que, ecoando todo o anterior debate, combina uma análise científica da alimentação com uma reflexão sociocultural sobre o tema. Natural de Belley, o seu autor foi um homem polifacetado que estudou Direito, Medicina e Química em Dijon. (Para esta última frequentou em 1776 os cursos de Guyton de Morveau, que mais tarde colaboraria com o grande químico Antoine Lavoisier.) Exerceu advocacia na cidade natal, cuja câmara municipal presidiu, e foi deputado do Terceiro Estado à Assembleia Nacional de 1789. Politicamente moderado, seria perseguido. Procurou asilo na Suíça e na Holanda e mais tarde nos EUA, onde deu aulas de francês e música e tocou violino num teatro. Regressou a França em 1797, já sob Napoleão, e foi nomeado juiz do supremo tribunal. Publicou várias obras de Direito e de Economia, mas foi Fisiologia do Gosto, dado ao prelo dois meses antes de morrer de pneumonia, que o eternizou.

A perceção do sabor é um dos fenómenos mais complexos do nosso corpo. Os avanços na sua compreensão têm sido, porém, consideráveis. Nas papilas gustativas possuímos células recetoras para os gostos básicos – doce, amargo, salgado, ácido e umami –, a cuja ação se junta a respiração retro-nasal (as moléculas voláteis dos alimentos, libertadas durante a mastigação, ascendem desde a cavidade oral até ao epitélio olfativo). Nada, aliás, que Brillat-Savarin não tivesse intuído: «Não só estou convencido de que sem a participação do olfato não há degustação completa, como também tendo a acreditar que o olfato e o paladar formam um só sentido, do qual a boca é o laboratório e o nariz a chaminé».

Algo inédito para a sua época, o grande gastrónomo referiu-se também à obesidade, que atribuiu ao excesso de comida e bebida, ao consumo de farinhas e açúcar e à falta de exercício. Os seus aforismos ficaram para a história. «Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és» e «A descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade humana do que a de uma nova estrela» contam-se entre os mais populares. Em sua homenagem, ‘Savarin’ e ‘Brillat-savarin’ são hoje, respetivamente, um bolo de massa levedada e encharcado em xarope de rum e um cremoso queijo de leite de vaca.