por Paulo Bugalho
Não é difícil encontrar, ecoando nos meandros exegéticos (não raro autopunitivos) da literatura portuguesa, um lamento de privação, o queixume de que falta à pátria algum acesso à sua sexualidade. A crítica de que não sabemos, em Portugal, escrever sobre sexo, só não é na totalidade justa por assentar amiúde em exemplos espúrios de pendor comercial e grosseiro (obras onde nada funciona, quanto mais a genitália) e falhar menção de alguns cometimentos razoáveis: há romances, como o mais recente de José Riço Direitinho, que apontam directos ao alvo, autores como Lobo Antunes, que não se desenvencilham mal nas cenas de cama, momentos delirantes em Manuel Ramos da Silva (vide Jesus, the last adventure of Kafka) e momentos de antologia frequentemente ignorados, como aquele passo de um dos aliás menos conseguidos romances de Nuno Bragança, Square Tolstoi, onde se descreve com desenvoltura muito apreciável um imaginoso partouse (eficaz e explícito, mesmo se estes desempenhos, como tudo, deixaram há muito de ser nomeados em francês). Porém, por mais esforço que se faça por puxar pela moral pátria, é nítido o desalento quando comparamos os exercícios deste lado do mar com os da nação brasileira (exemplo sempre de uma comparação lógica, visto ter origem em tronco partilhado). É claro que seria inesperado encontrar bom sexo na ironia burguesa de Agustina, ou na sisudez imperial de Saramago, mas não será errado dizer que os brasileiros sempre souberam, neste campo, dar outra volta na língua. Seja pelo à-vontade com a formulação coloquial, ou por uma mistura cultural e étnica que mais cedo apelou à libertação da moralidade, a verdade é que a ficção brasileira não escorrega hoje quando tem de mostrar a reprodução humana em cena e mesmo certas profanidades parecem soar menos desconfortavelmente vulgares no português do Brasil do que na versão inicial. Hilda Hilst fá-lo tão bem como Rúben Fonseca, ou Dalton Trevisan. com a mesma desenvoltura que vemos nos diálogos e na descrição do quotidiano, virando as costas com tanto sucesso como outros conterrâneos ao pudor com que o escriba português se ajoelha, mudando o tom de voz, quando pretende dirigir-se à divindade superior da literatura. Hilst é boa na pornografia e isso desde logo assombra, porque é mulher, nascida em 1930. Autora de obras em diferentes géneros, recebeu o Prémio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (1977) e o Prémio Jabuti (1984), passando a integrar o cânon moderno brasileiro. Parece ter subido ao pódio por degraus menos comuns. Ainda assim, ou mesmo por isso, talvez seja interessante saber porque e para que penetra Hilst no tom desabrido com que descreve animados conciliábulos de bocetinhas, paus, buracos, cacetas, bocas e tantos outros segmentos do repertório corporal, em coreografias configurando aquela espécie de mecânica que se lê em Sade, aqui desorganizada por toda uma lassidão tropical. Ou longas enumerações ritmadas, versando incestos, violações, pedofilias, zoofilias e todo o tipo de contravenções sociais. Violência e sexo serão sempre chamativos, são um impulso da espécie, elementos atávicos, pertença da matriz natural. O facto de ser fulcral, porém, não confere ao sexo, de imediato, nenhuma espécie de respeitabilidade literária: a ficção não serve para replicar o mundo, mas para representá-lo, usando para isso dos exemplos que achar convenientes. O sexo é por isso tão interessante, ou justificado na narrativa, quanto contribuir para o incerto gume que faz dela literatura e apenas nessa justa, mas quase imensurável, medida. Colocado aí, este livro, que é uma compilação de obras diferentes publicadas entre 1982 e 1993, constitui, por mostrar um caminho e as escolhas envolvidas, um interessante posto de observação. E aqui talvez caiba espreitar de perto algumas das cabeças desta hidra.
A obscena história da senhora D., novela que intitula o livro, é de longe o seu melhor momento (depois é sempre a descer, tanto no sentido moral como, infelizmente, no sentido literário). Um certo experimentalismo existencial, se bem que tardio, dá-lhe uma consistência impregnante. Numa espécie de cenário-situação beckettiano (um vão de escada escassamente detalhado) perora uma mulher cujo aspecto e comportamento abjectos escandalizam o povoado em volta, seja porque vitupera e tenta seduzir, seja porque surge em peito nu a um qualquer postigo, exibindo não apenas uma sexualidade feminina despudorada, mas a despudorada sexualidade de uma mulher velha (sendo que a partir de certo patamar etário a expressão “sexualidade despudorada” parece adquirir, na sociedade ocidental pelo menos, o carácter de uma redundância). Ouvimos, em tecido vocal bem misturado, os comentários dos vizinhos e a voz da dita senhora D. (D de derrelicta, explica a própria), que ora se insurge contra a estupidez do mundo, ora emerge em nostálgicas reconstruções de alegrias amorosas e sexuais (“subo até teus tornozelos, vou te lambendo lassa, aspiro pelos, cheiros, encontro coxa e sexo, queria te engolir, Ehud”), ora recua a um centro fulcral, uma insurreição comum à espécie, que dá matéria, no entender nosso, à porção mais consistente do trabalho. Ehud, o amante antigo, queixa-se: “agora vamos, tira a roupa, pega, me beija, abre a boca, mais, não geme assim, não é para mim esse gemido, eu sei, é para esse Porco-Menino que gemes, pro invisível, para luz pro nojo, fornicas com aquele Outro, não fodes comigo, maldita, tu não fodes comigo”. “Quem foi” responde D., “que apagou meu envoltório de luz, quem em mim pergunta o irrespondível, quem não ouve, quem envelhece tanto, que desgasta a ponta dos meus dedos tateando tudo, que em mim não sente?” Falamos da raiva adâmica contra o criador ou, para sermos justos, uma raiva de Eva contra quem a pôs no mundo sem lhe conferir as armas para o fruir inteiramente, ou rejeitar com eficácia absoluta. Esse ódio a um deus que não se mostra nem responsabiliza e a quem só parece ser possível escapar pelo uso excessivo dessa arma imperfeita (o corpo e pelo corpo o sexo, precisamente) parece delinear a música de um de profundis que sobe desde o vão de escadas para um dédalo de recordações prazerosas que a ruína física da velhice não consegue resgatar. “Que amor é esse “, clama D. “que empurra a cabeça do outro na privada e deixa a salvo pela eternidade a sua própria cabeça? e o que ele fez com Jó, te lembras?. “ O amante responde: “Teu deus está a salvo, Hillé, fica contente”. E D. remata: “Que boniteza isso de amá-lo nos seus confins e chafurdar por aqui”.
Em Com os meus olhos de cão, a novela seguinte, um professor tenta escapar, sem sucesso, a uma espécie de contra-revelação, onde a estrada para Damasco é substituída pelo topo de uma colina nua a voz de deus pelo silencioso afadigar-se do mundo natural, as formigas no seu enlear desenhando a intuição (“Um universo unívoco sim”) com que o homem sonha, e não alcança, por ter de permeio a linguagem. No meio da progressiva destruturação da fala e com ela do significado do mundo burguês em que as personagens se movimentam, o professor visita um colega que escolheu como solução existencial viver com uma porca (presume-se, sem certezas, que sob o estatuto de animal de estimação). A porca chama-se, já adivinharam, Hilda, um nome que de tão estrangeiro, explica o docente e investigador da linguagem, começa logo por soar sujo.
Do ensimesmamento en abyme do personagem de Com os meus olhos de cão, acaba por sair um dilema angustiado: “depois daquilo de significado incomensurável só duas opções: viver a vida num patético indecente, tresudar obscenidade, por que não? “Ao leitor que avance nos contos seguintes, não escapará a certeza de que a autora escolheu avançar pela segunda via. Em O caderno rosa de Lori Lamby (uma espécie de diário íntimo em que a protagonista, uma criança, explica o gozo com que se prostitui para instrução dos pais), Contos de escárnio – Texto grotescos (o título diz tudo), Cartas de um sedutor (anatomia fragmentada do incesto em ambiência novamente beckettiana) e até Rútilo nada, onde a pornografia é finalmente amansada pela poesia, há muito sexo. Falamos de uma preocupação quase ternurenta em penetrar todos os tabus e esventrar as regras mais básicas da conveniência erótica, incluindo pedofilia, sadismo e bestialidade. Não há, desculpe-se a sinceridade, buraco que escape. Pese embora a lembrança de semear o texto, aqui e ali, com um nome famoso (Camus, Chersterton, Wittgenstein, Talleyrand, Byron, Euclides da Cunha, Chomsky – até porque, à cautela, parte dos personagens acumulam as funções de pornógrafo e escritor), deixa de haver literatura, muito menos vontade alguma de interpelar o criador ou investigar seja o que for sobre a natureza humana. Podemos bem acreditar numa espécie de pacto sarcástico com o hipócrita leitor, e às tantas parece soar-nos um tácito sussurro (“então, não estás a gostar, não te fascinam as partes pudendas?”), mas a atenção tem limites e não é difícil à concupiscência transmutar-se, súbita e irreversivelmente, em bocejo.
É neste cansaço orgíaco que termina e se perde o livro e em que gostaríamos de terminar também a ora recensão, voltando, em jeito de despedida, ao tema que nos esporeava no início. Para que serve a pornografia, ou, no que a esta questão específica diz respeito, para que serve que tema for, na literatura? Sozinho? Nada. Como pretexto? Tudo. O sexo, como a violência, a dor, a morte, o luto, e outros temas inevitavelmente apelativos, servem, em literatura, para apontar: acordando o leitor para o tal gume indefinível que é o trabalho próprio da escrita. Hilst aponta com a desenvoltura de quem conhece a linguagem, nos primeiros contos. Depois desiste. Mantém o florete no ar, continua a manuseá-lo em belos arcos vistosos, mas já não tem oponente. Esqueceu-se dele, confundiu pretexto com fundo ou pretendeu persuadir-nos de que nada existe e o universo é um gigantesco antro escatológico. Exagera, não convence. Sem verdade, todo o texto se torna masturbatório. E não havendo convívio…