Por Virgílio Machado, professor e autor de Portugal Geopolítico
A viabilidade alimentar é causa e sucesso das ordens políticas. Nela residem os fundamentos das caçadas pré-históricas ou aprovisionamento de excedentes alimentares, prevenindo fomes e carestias. O cientista político James Scott sustenta no seu livro Seeing Like a State (Ver como um Estado) de 1998, que todos os Estados têm características comuns: procuram controlar as respetivas sociedades, o que implica em primeiro lugar, torná-las legíveis.
Nesta ordem de ideias, as grelhas geométricas e ordenadas de ruas na Baixa Pombalina visariam o controlo da propriedade, da população e dos seus movimentos. Igualmente, a matriz cadastral e parcelamento agrário no Império Romano modelariam o território, associando a posse da terra à sobrevivência alimentar e à base de acumulação da riqueza onde assentaria seu poder político. Nestes momentos, localizam-se expoentes máximos de afirmação de poder e soberania políticas ligados a momentos de progresso e desenvolvimento.
Todavia, tais foram exceções na ordem política portuguesa. Não raro, seus soberanos e elites procuraram mais no comércio que na agricultura, fonte de rendimentos e poder, explorando interdependências económicas entre regiões fisicamente distantes, colocando no mar e não em terra, o controlo de rotas e pontos estratégicos, primando, assim por formas pioneiras de globalização económica, incluindo, com a produção monofuncional de bens orientados para a exportação, como o sal, o vinho ou o açúcar, rejeitando, em regra, uma produção e uma ordem com vista à sustentabilidade alimentar das suas populações.
Noutro lado do mundo, temos História e Impérios com vocações diferentes. Já no século VI a.C. a construção do Estado chinês impulsionado pelas guerras, foi sustentada pela reorganização cadastral rural com grelhas regulares de terras e canais de irrigação, censos e tributos em domicílios de grupos de famílias e levantamento de todas as realidades produtivas para cadastro, incluindo salinas, viveiros de peixe, lagoas e florestas. A garantia de continuidade produtiva foi possível por desenvolvimento de vias de comunicação e infraestruturas.
A China é o país mais populoso do mundo, com 1,4 biliões de pessoas. E, pergunta-se, tem sustentabilidade alimentar? A resposta, pelas organizações internacionais, ainda que com dúvidas, em termos ambientais e de segurança alimentar, parece positiva. Pode alimentar 20% da população mundial, dispondo apenas de 10% de terra cultivável.
Têm Portugal e a Europa algo a aprender com a China? Ainda que não adotemos seu modelo político? Que politica de sustentabilidade alimentar deve a Europa seguir, atendendo à guerra com a Rússia na Ucrânia, países de grande produção alimentar? Cujo fim não se conhece, com consequentes riscos sistémicos alimentares mundiais. Será a China a maior potencia mundial do século XXI? Portugal e a Europa devem acordar da letargia.
Um grande erro geopolítico europeu é a crescente desvalorização sistémica do domínio público como território sujeito a cadastro e registo. Porque sem inventariar, não se protege ou classifica. Ou se orienta com finalidade produtiva de riqueza alimentar, seja nas florestas, rios, lagoas, salinas, mar territorial, áreas protegidas, reservas agrícolas ou ambientais. A sua condenação à improdutividade é geradora de desertificação, pobreza, incêndios e outros desastres ambientais.
A sustentabilidade alimentar implica também que as populações locais sejam consideradas. Como grupos de conceção comunitária, de viabilidade ambiental e reserva complementar à propriedade privada e que valorizem, enquanto ordem, o conjunto. Fundos de desenvolvimento territorial associados à valorização de práticas ecológicas em que as populações locais sejam, simultaneamente, acionistas, beneficiários e contribuintes da riqueza produzida catalisarão novas formas de desenvolvimento sustentável e sustentabilidade alimentar. A um Estado fiscalizador, interessa aqui, antes, um Estado pedagogo e técnico.
A História reserva dúvidas à eficácia das anunciadas politicas do Governo no setor alimentar. 0% de IVA peca por anacronismo. O Estado nunca deveria tributar o consumo de produtos alimentares essenciais. A sua fúria tributária no comércio alimentou ânsias especulativas das grandes cadeias de distribuição que a Europa patrocinou. Que vão ser difíceis de conter em tempos de inflação. Veja-se, ainda, a desvalorização do público, com a fiscalização alimentar dessas cadeias por empresas privadas e não pela policia do Estado. Ao sofisticado mundo geoeconómico de hoje, a Europa e Portugal precisam de urgente e inteligente geopolítica. Para garantir sustentabilidade alimentar.