por Nuno Cerejeira Namora
Advogado
Vivemos em tempos de indignação. Se me perguntarem que indignação é esta, simplesmente responderei: é um sentimento de impotência; é a manifestação possível de inconformismo de quem é alvo da indiferença cósmica do mundo.
O traço identificativo da indignação moderna é a hipocrisia. Não surpreende que num ambiente consumido pela encenação teatral as palavras surjam como uma forma de redenção pelas nossas ações. Recordo todos aqueles que, embora colocando a sua veste de paladinos dos indigentes e miseráveis vociferando acerca das lastimáveis condições laborais no Qatar, mesmo assim assistiram religiosamente a todas as partidas. Escusado será referir que no Qatar pouco lhes interessa o que é escrito ou dito num órgão de comunicação social português; interessa-lhes antes o lucro, para o qual todos nós contribuímos, mesmo os mais “indignados” entre nós.
As palavras são precisamente o tema sobre o qual verso. Tem-se assistido “recentemente” a um movimento crescente de alteração de obras literárias para as adequar às supostas sensibilidades das novas gerações, eliminando a linguagem tida por ofensiva ou incompatível com o nosso panteão moral. Não creio que se trata de um movimento recente pois, um compulsar pelo passado (e não me reporto apenas às experiências autoritárias do séc. XX) revela-nos o frenesim com que nós, seres humanos, tentamos alterar a realidade histórica com vista a adaptá-la à nossa mundividência “actual”.
Embora atualmente desacreditada, foi célebre a tese de Edward Gibbon de que o efeito catalisador da queda do Império Romano terá sido o Cristianismo; e ainda que dificilmente se possa explicar que uma civilização que nos deu imponentes nomes como Roger Bacon, São Tomás de Aquino ou Alberto Magno tenha sido acometida por uma suposta “idade das trevas” ou contribuído para o atraso científico, tal nos fora ensinado na escola. Outros tantos exemplos de revisionismo histórico, dos quais ainda somos vítimas, poderiam aqui ser dados.
É que, de facto, do que se trata não é de adaptar a verdade histórica às novas sensibilidades, mas de a alterar significativamente.
Os que clamam por esta nova censura (é preciso utilizar as palavras certas) ocultam a sua altivez e pundonor através do seu alegado sentido de virtuosidade. Na realidade, apenas um sentimento da mais travessa soberba permite que alguém se reveja no direito de alterar a realidade histórica ao mesmo tempo que acha que as gerações futuras não olharão retrospetivamente para nós com o mesmo desdém que nós encarámos alguns hábitos dos nossos antepassados.
Qual será o limite desta indignação? Teremos de proteger as pessoas de si mesmas, filtrando-lhes o conteúdo que achemos que ofenderá a sua sensibilidade? Sempre que confrontados com o retorno das tendências paternalistas, importa sempre fazer a pergunta habitual: quem guarda o guarda?
De facto, a levarem-se estas tendências de revisitação histórica às suas últimas consequências, alguém restará ileso? Cremos que não: teríamos de recomeçar do zero.
O que seria de Platão, de Aristóteles ou de Hegel, frenéticos defensores de uma sociedade totalitária?
Podemos ainda tolerar Voltaire, Locke, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger ou Kant, cujo racismo, antissemitismo ou misoginia permeiam toda sua obra?
Que dizer de Foucault, Simone de Beauvoir ou de Sartre, subscritores de uma conhecida petição francesa acerca da idade de consentimento…?
E que lugar restará a Marx, figura messiânica de muitos destes paternalistas, que uma obra dedicou em torno da questão judaica?
E o mesmo se diga para o nosso Eça, pois certas passagens das suas Cartas de Inglaterra recordarão uma outra obra proscrita de um presidiário alemão.
Temos de colocar um travão nestas tendências revisionistas ou ficaremos sem passado. E um povo sem passado, é um povo sem futuro.