Estamos em abril, mas o sol parece querer enganar-nos com as temperaturas a rondarem os 30 graus. Na Praça do Chile, por mais estranho que pareça, reina a calma, com pessoas a subirem e descerem a Avenida Almirante Reis. Não há trânsito, são vários os que utilizam bicicletas e trotinetes, mas quem repara na sinalização rodoviária percebe que já devem ter começado mais obras na cidade. Grandes painéis amarelos informam que a Zona Ribeirinha está condicionada e, por isso, quem vem de carro, tem de fazer um desvio. No entanto, chegando ao Intendente, a conversa muda de figura, com a obra do Plano de Drenagem que começou há uns meses.
O grande choque dá-se depois do Martim Moniz, precisamente na Praça da Figueira. Carros da Polícia, mais sinalização temporária, enchentes de pessoas que lutam por espaço nos passeios e carros que apitam uns para os outros como quem não compreende nada do código da estrada. A Rua da Prata está completamente cortada devido ao colapso de um coletor de saneamento. Existem desvios por todo o lado. Mas afinal, o que se passa?
Obras na zona Ribeirinha de Lisboa
Foi na quarta-feira que a circulação rodoviária foi interrompida ao trânsito em geral, em ambos os sentidos, na zona ribeirinha de Lisboa, entre as avenidas Infante Santo e Mouzinho de Albuquerque, passando este trajeto a estar vocacionado para o trânsito local. As ‘obras estruturais’ que levaram a Câmara Municipal de Lisboa (CML) a apresentar estas alterações no trânsito da capital são o Plano Geral de Drenagem na Avenida da Liberdade e Santa Apolónia, a requalificação da Rua do Arsenal e topo norte da Praça do Comércio, a alteração dos coletores da Rua da Prata e da Avenida Infante D. Henrique e ainda a expansão da Linha Verde do Metropolitano.
Mas há um problema, para além dos empresários e comerciantes de algumas ruas afetadas não terem sido informados das limitações, estas alterações ainda não têm data marcada para acabar, o que tem gerado o caos entre aqueles que vivem do movimento dos espaços. Como alternativa aos cortes, a autarquia sugere que os automobilistas passem a utilizar a chamada 5.ª Circular, uma via imaginária que pretende levar o fluxo que atravessa a cidade a usar as vias entre Alcântara e o Parque das Nações. Por isso, o trânsito entre as avenidas Infante Santo e Mouzinho de Albuquerque será apenas para circulação local, pelo que a CML aconselha a 5.ª Circular, que percorre as seguintes artérias: Avenida Infante Santo, Praça da Estrela, Largo do Rato, Rua Alexandre Herculano, Rua do Conde de Redondo, Avenida Almirante Reis, Praça do Chile, Rua Morais Soares, Praça Paiva Couceiro e Avenida Mouzinho de Albuquerque. Assim, quem viajar de Alcântara para o Parque das Nações deverá entrar na Infante Santo, sendo que no sentido oposto tem de apanhar a Mouzinho de Albuquerque.
Na Baixa de Lisboa estarão dedicadas ao trânsito local todas as ruas a partir destes locais em direção à frente ribeirinha: Rossio, praça da Figueira e praça Luís de Camões. O que implica que o trânsito vindo da Avenida da Liberdade deverá inverter o sentido no Rossio, regressando ao Marquês de Pombal, enquanto o proveniente da Avenida Almirante Reis deve fazer inversão de marcha no Martim Moniz ou na Praça da Figueira/Rossio/Restauradores. Finalmente, o trânsito originário do Príncipe Real deverá fazer um desvio na Praça Luís de Camões e seguir para a Calçada do Combro/Estrela. Além disso, na Baixa, será proibido o acesso a veículos com peso superior a 3,5 toneladas entre as 8.00 e as 20.00 horas e as cargas e descargas deverão ser feitas à noite. No que toca aos autocarros da Carris e Carris Metropolitana, veículos de emergência, táxis e bicicletas estes não vão estar abrangidos por estas restrições, ao contrário dos TVDE e veículos turísticos, que, contudo, poderão ser considerados trânsito local se estiverem a «realizar um serviço nas zonas onde existem restrições». Quem reside, trabalha ou tem como destino esta zona, também é considerado trânsito local.
Rua da Prata fechada
Mas de que forma se sentem os comerciantes? De que maneira todas estas limitações os prejudicam? Na Rua da Prata pouca gente se vê. Quem olha para a Rua, da Praça da Figueira, pode até julgar que as lojas se encontram quase todas encerradas. Mas não.
Filipa (nome fictício), é proprietária de uma das várias lojas de óculos fixadas na rua: «Isto vai matar-nos. Esta é a verdade. Estas obras estão a matar o comércio desta rua e parece que ninguém está preocupado com isso», lamenta ao Nascer do SOL. Segundo a optometrista, disseram aos lojistas que as obras durariam três ou dois meses. «Multiplicado por quantos? Nessa altura nem estava tão preocupada. Mas agora o tempo está a passar e os clientes estão a deixar de aparecer. A penúltima informação que tive foi que as obras acabariam em novembro, até enviei um email para a Câmara a perguntar se haveria algum apoio… Responderam-me que sim, mas apenas para as lojas que estão em frente ao estaleiro. A última informação é que a rua estará assim até ao final do ano. Este ano será um ano para esquecer», continuou, explicando que a sua loja «não é para turistas». «Tenho clientes fixos, velhotes que chegam de longe para tratarem dos olhos aqui. Temos muitos clientes que já vieram cá e quando se depararam com este cenário, disseram que só voltavam quando as obras terminassem», alertou. «Já tive de mandar embora a minha funcionária. Passo o dia aqui sozinha. Estou aqui há 15 anos. Não recebo ordenado, mas vou mantendo a empresa», acrescentou.
Um bocadinho mais à frente, Vitória, funcionária da casa de roupas há 40 anos, tem a mesma opinião: «O que tenho visto acontecer nos últimos anos é muito triste. Às vezes dou por mim a interrogar-me se efetivamente é a mesma cidade. Estamos cada vez piores. Este tipo de obras prejudicam-nos e é uma atrás da outra», afirma. Neste momento, o mais grave, para si, é que «as pessoas pensam que na Rua da Prata está efetivamente tudo encerrado». «Não especificam que é apenas o trânsito. Há muita gente que nos telefona a perguntar se sempre estamos abertos», disse.
Ao contrário das duas comerciantes, há quem se distancie desta ideia. Elisabete, funcionária numa loja de ténis, à entrada da rua, acha que as vendas melhoraram desde que as obras começaram: «Vou ser muito sincera… A nível de vendas, desde que as obras começaram, que estamos melhores. Não é a opinião de todos os vizinhos, claro… Mas como a rua está sem trânsito, as pessoas chegam-nos a pé. Fogem da Rua Augusta, que anda impossível, optando por estas ruelas», admitiu. Segundo Elisabete, o comércio está difícil, principalmente depois da pandemia da covid-19. «Tivemos muitas pessoas que fecharam as lojas. E como isto está a ser tudo transformado em dormitórios para os turistas, os comerciantes locais que cá estavam há anos, começaram a passar mal. Acredito que agora possa ser complicado, mas futuramente teremos aqui uma praça maravilhosa. Vai ser tudo comércio! Temos de ter paciência. Pode ser uma obra chata para muitos, mas o resultado vai ajudar-nos depois», acredita.
Associações em ação
De acordo com a presidente de direção da União de Associação de Comércio e Serviços (UACS), Carla Salsinha, o grupo não é contra as obras e percebe que estas estavam pendentes «há décadas». No entanto, afirma, o que acontece neste momento «é a junção de várias obras». «A Câmara decidiu avançar com tudo ao mesmo tempo. Neste caso, a maior perplexidade foi nós desde o primeiro momento termos andado a acompanhar a Câmara com sessões de esclarecimento, por causa do plano de drenagem e em nenhum momento nos foi dito que iria ter de ser cortado o trânsito da Baixa e limitada a mobilidade e acesso automóvel, desta dimensão e no período de dois anos», lamentou a representante. O tempo da obra também assusta a UACS. «Nós percebemos que as obras têm de ser feitas, se existe alguma conflitualidade entre obras, que resolvam», afirma, defendendo que, antes de fazer a apresentação pública, a Câmara «devia ter chamado as estruturas associativas e dizer-lhes o que ia acontecer verdadeiramente». «Os comerciantes estão com medo. Estamos a falar do seu futuro. Não é brincadeira», frisou ainda, lembrando que tivemos dois anos de pandemia. «O nosso setor foi obrigado a fechar, enquanto a restauração ainda pode abrir para take away. Foram vários meses, segue-se um ano com o disparar da inflação e a queda de poder de compra nos consumidores nacionais, o que afeta as empresas. Agora mais esta situação?», interrogou.
Carla Salsinha revelou ainda que no dia 2 de maio irá decorrer uma reunião entre a União e o vice-presidente da CML, onde este irá apresentar e explicar todo o plano aos empresários e onde irá ouvir as preocupações dos comerciantes. «A Câmara Municipal e a nossa administração de condomínio a céu aberto. Se num centro comercial não é permitido fazer obras durante o dia; limitar as entradas; as cargas e descargas são feitas à noite, na cidade é completamente diferente. Tem de haver responsabilidades. Não nos estão a dar condições e nós pagamos para aqui estar», lamentou.
Já a Associação Valorização do Chiado (AVC) considerou que os condicionamentos à circulação automóvel na baixa lisboeta, a partir de 26 de abril, «vão ter um impacto negativo, quer para moradores, quer para comerciantes e empresas». E o mesmo acontece com a Associação de Dinamização da Baixa Pombalina (ADBP): «Não gostaríamos de comentar esta decisão da CML. A única coisa que dizemos, é que a lamentamos, tendo em conta o que vivemos nos dois últimos anos», escreveu Vasco Mello, vice-presidente da ADBP, num email enviado ao Nascer do SOL. «O que nos preocupa mais é o acesso dos consumidores e principalmente, os fornecedores com camiões pesados à zona da Baixa-Chiado e os custos que estas alterações implicam para as empresas, num contexto que não lhes é favorável», continuou. Para si, as piores consequências destas obras serão os aumentos dos preços finais aos consumidores e os «problemas de abastecimento daquela área, aquando de eventos, como a Jornada Mundial da Juventude».