Teresa Nogueira Pinto*
Em França, o Estado providência é parte fundamental do contrato social e, no imaginário de muitos franceses, permanece o desejo de regressar a 1983, quando o Presidente François Mitterrand reduziu a idade da reforma de 65 para 60 anos.
E este 1.º de Maio teve o seu quê de eterno retorno. Desde as origens, em 1889, quando, num tributo às lutas sindicais de 1886 em Chicago, a segunda Internacional Socialista reunida em Paris decidiu dedicar um dia – o primeiro de maio – à reivindicação de direitos laborais. A data tornou-se, lá como cá, momento de expressão de descontentamento, e muitas vezes ponto de partida para conquistas importantes. Em 1919, o primeiro-ministro Georges Clemenceau, republicano radical, anticatólico e anticomunista, aprovou a leis das oito horas de trabalho e criou o Ministério do Trabalho e da Previdência Social, numa tentativa de conter o crescimento do partido Comunista. Em 1936, o socialista Léon Blum, implementou uma revolução da lei laboral num contexto de ansiedade política e crise económica, que impactaria a produção, o consumo e aumentaria o desemprego. E no maio de 68, estudantes e operários uniram-se em greves e paralisações, na revolução que nunca aconteceu.
Este ano, a data voltou a ser dos descontentes. Quase quatro meses depois do anúncio da reforma das pensões e de vários protestos e paralisações, como seria de esperar, o dia foi de contestação. Segundo o Ministério do Interior, houve 291 detidos e pelo menos 108 polícias ficaram feridos.
Batalha no Conselho Constitucional
Depois de um mês de debate parlamentar e da aprovação do texto no Senado, no dia 16 de março a primeira-ministra Elisabeth Borne invocou o artigo 49.3 para garantir a passagem da lei na Assembleia Nacional. Seguiram-se grandes (e por vezes violentos) protestos, e a promessa de que a luta continuaria nos tribunais, colocando-se a hipótese do Conselho Constitucional invalidar parcial ou totalmente a lei.
Mas essa frente parece ter-se esgotado. No dia 14 de abril, o Conselho Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do texto e um pedido de referendo de iniciativa partilhada, anunciou o seu veredicto. Validou as principais medidas da lei e rejeitou o pedido de referendo, alegando que a proposta de lei que seria referendada não versa sobre uma reforma relativa à política social (conforme estabelecido no artigo 11 da Constituição), uma vez que à data em que o pedido foi feito a idade legal da reforma era ainda de 62 anos. No dia 15, o Presidente Emmanuel Macron promulgou a lei. E, no passado dia 3 de maio, o Conselho Constitucional voltou a rejeitar um outro pedido de referendo de iniciativa partilhada.
Uma ‘crise democrática’
A primeira-ministra francesa afirmou que o «caminho democrático» da reforma estava terminado, sugerindo que seria hora de virar a página. Já Laurent Berger, secretário-geral da CFDT, disse em entrevista à TF1 INFO que o país atravessa uma «profunda crise democrática», fruto de fatores como um «sentimento de invisibilidade no seio de uma sociedade cansada e fraturada», uma «realidade social que é difícil» e uma «desconfiança do poder». Crise que, segundo o líder sindical, não é de exclusiva responsabilidade do Governo, e assenta essencialmente no ressentimento.
Num certo sentido, o que move os trabalhadores franceses não é muito diferente do que move os agricultores nos Países Baixos contra o plano imposto pelo governo, de redução das emissões de azoto e amoníaco. Ambos protestam como reação a leis que percecionam como injustas. E, subjacente a estes movimentos, estão questões complexas de natureza política. Estarão os limites à soberania popular inscritos nos limites de sustentabilidade da segurança social, ou numa possível crise climática?
Se a crise é democrática, então a solução será política. Como referiu o académico Bastien François em declarações ao La Tribune, «Qualquer que fosse o veredicto e independentemente do que pensamos da instituição, o Conselho Constitucional não nos tirará da crise política em que estamos. Porque a questão não é de natureza constitucional, ela é democrática».
Marine Le Pen que, num tweet recente voltou a afirmar uma ideia que tem apresentado recorrentemente: a de que o povo tem sempre a última palavra, e por isso «é preciso devolver a palavra ao povo». Também numa declaração, o Rassemblement National (RN) afirmou que «Apenas o voto dos parlamentares e o boletim de voto permitirão aos franceses reverter esta reforma injusta».
Embora opondo-se à lei, Le Pen – que tem feito um esforço de institucionalização do discurso e do partido – é menos vocal do que os líderes à esquerda. Mas o clima de tensão política e social e a impopularidade de Macron têm beneficiado a líder da oposição. Em abril, enquanto nas ruas se gritava «Six ans. Ca suffit!», um barómetro político realizado pela Ipsos para o le Point, indicava que a taxa de rejeição de Macron era de 69 por cento, com 46 por cento dos inquiridos a manifestarem uma opinião ‘muito desfavorável’ do Presidente. Já a taxa de aprovação da primeira-ministra Élisabeth Borne atingiu o seu valor mais baixo, com 23 por cento. Marine Le Pen, por sua vez, tinha um índice de aprovação de 39 por cento.
Macron, a quem Le Pen, num debate que não lhe correu bem em 2017, acusou de ser o «candidato da uberização» e do «desmembramento da França pelos grandes interesses económicos», perde hoje apoio entre os mais novos, um segmento do eleitorado que foi decisivo para o tornar o mais jovem presidente da V República. E é possível que a sua imagem venha a deteriorar-se mais no decurso de uma investigação sobre o financiamento das suas campanhas de 2017 e 2022, e possível favorecimento do seu governo a uma grande consultora americana.
E agora?
Em 1995, ano em que Jacques Chirac foi eleito Presidente, uma série de protestos greves à escala nacional obrigaram o primeiro-ministro Alain Juppé a deixar cair os seus ambiciosos planos de reforma. Mas Chirac, ao contrário de Macron, estava a iniciar o seu primeiro mandato. Já Sarkozy, em 2010, a meio do seu primeiro (e último) mandato, conseguiu fazer passar a alteração à idade da reforma, resistindo a uma forte contestação nas ruas e esperando que a indignação desse lugar à resignação. É o desfecho provável também agora, embora a os opositores da reforma ainda não tenham esgotado todas as opções. Em junho, 20 deputados do grupo Liot (Libertés, Indépendants, Outre-mer et Territoires) apresentarão uma proposta de lei na Assembleia Nacional para estabelecer a idade da reforma aos 62 anos. A proposta deverá ter o apoio da coligação de esquerda Nupes e do RN mas, mesmo contando com o apoio de alguns deputados do Les Républicains, deverá ficar ligeiramente aquém da maioria necessária.
Esgotada a via parlamentar e do referendo, e sendo provável um aumento da mobilização em setembro, quando os efeitos práticos da lei se começarem a sentir, a grande consequência política da reforma será o desgaste de Emmanuel Macron.
Mas o Presidente tem num dos seus rivais um possível sucessor, numa via de Macronismo sem Macron representada por Édouard Philippe. Primeiro-ministro entre 2017 e 2020, Édouard Philippe tornou-se o mais popular dos membros do Governo. Vítima da sua popularidade, foi afastado por Macron e criou, em 2021, o partido de centro-direita Horizons. Nas sondagens, seria o único candidato a chegar ao segundo turno além de Le Pen, que parece ver no ex-primeiro-ministro o seu próximo adversário. E se a política é sobre definir amigo e inimigo, então Édouard Philipe será um nome importante na França pós-Macron.
*Texto editado por Sónia Peres Pinto