Em 26 de novembro de dois mil e vinte e dois, Fernando Gomes deixava a sua morada neste mundo transferindo-se definitivamente para a Casa do Pai. Foi com mágoa e consternação que recebi a notícia, infelizmente já esperada, dada a gravidade da doença que o atingiu.
Se hoje estou aqui a recordá-lo, é porque no passado dia 14 de maio fez um ano que nos encontrámos pela última vez. Parece que o estou a ver, alegre e bem-disposto, à porta do Porto Palácio, a ‘minha casa no Norte’, pronto para ir comigo ao Estádio do Dragão, onde iria decorrer o último jogo do campeonato. Estranhamente (e ainda hoje me interrogo) fez questão de tirar ali uma fotografia comigo, para mandar a um amigo seu a viver no Brasil, que seguia de lá os meus artigos publicados neste jornal. Mal sabíamos nós que era a última vez que o podíamos fazer e que aquele programa nunca mais se repetiria.
Conhecemo-nos há mais de trinta anos por intermédio de um amigo comum, Nuno Ferrari, o categorizado repórter de imagem que todos recordamos com saudade.
A partir daí nasceu uma amizade que se estendeu à família, onde a distância que nos separava nunca constituiu obstáculo. Futebolista brilhante, goleador nato e jogador de invejável categoria, era referência obrigatória no mundo do futebol. Sempre identificado com o FC Porto, foi, igualmente, um excelente profissional nos outros clubes que serviu, bem como na Seleção Nacional, onde deixou sempre a sua marca.
Não me esqueço do seu gesto simpático e amigo ao oferecer a sua camisola enlameada ao meu filho no final de um jogo no Estádio do Restelo, que ele ainda hoje conserva religiosamente. Em privado, era uma pessoa simples, simpática, antivedeta, e com sentido de família.
Chegado o ano de 2019, foi-lhe diagnosticada uma grave doença oncológica que fui acompanhando a par e passo, mais com o coração do que com a ciência. Fiel seguidor do seu médico assistente e das suas orientações, que cumpria sem hesitar, nunca o ouvi lamentar-se da ‘sorte’ que o tinha afetado, nem quis ouvir outras opiniões, ao contrário do que hoje frequentemente acontece.
Ao longo da minha vida clínica tenho vivido situações bem dramáticas com doentes, a quem não é fácil tirar-lhes da cabeça expressões como: «Que mal fiz eu a Deus para Ele me castigar assim?». Ou aos quais é preciso fazer ver que o caminho mais correto é seguir à risca o critério do médico que o acompanha.
Posso, pois, dizer que a situação de Fernando Gomes foi, em minha opinião, uma louvável exceção à quase regra geral nos nossos dias. Quando falávamos, era inevitável não tocarmos no assunto, mesmo com o futebol em pano de fundo. Mas tive sempre o maior cuidado em não ir além daquilo que ele me perguntava, procurando seguir as ‘boas regras’. Diga-se que o tema ainda hoje é controverso, havendo quem defenda esconder tudo ao doente e quem advogue precisamente o contrário: revelar toda a verdade, sem contemplações.
São critérios, ambos discutíveis, com vantagens e inconvenientes. A experiência diz-me que, nestes casos, deve falar-se verdade, embora com ponderação e bom senso, para não esmagar a esperança que um ser humano ainda tem quando começa a sentir-se perdido e consciente de que não é possível fazer muito mais.
Foi para mim muito difícil lidar com este caso. De um lado estava o médico, compreendendo a evolução do problema; do outro o amigo, que não queria acreditar no que estava a acontecer.
Em setembro de 2022 soube que tinha sido internado devido a uma intercorrência, consequência da sua doença de base. Mandei-lhe uma mensagem escrita, mas já não tive resposta.
Partia dois meses depois, deixando atrás de si um rasto de valentia, coragem e saudade.
Acompanhei-o desde Lisboa, pedindo a Deus que o recompensasse pelo seu trabalho nesta Terra e o recebesse na Sua Glória. «A carne desfaz-se na Terra, mas o espírito jamais se apagará», são palavras do meu pai, num discurso que proferiu ao Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, por ocasião das bodas de ouro do seu curso médico. Certo desta realidade – e na mesma linha de pensamento -, também eu posso dizer de Fernando Gomes que, para lá da saudade, ficará sempre a memória que não se apaga.
(À memória de Fernando Gomes)