Querida avó,
Escrevo-te no rescaldo de uma ida ao cinema. Fui ver Simone – A Viagem do Século um filme que considero, absolutamente, indispensável, sobre a vida e obra de Simone Veil.
Uma narrativa de Simone Veil, nos últimos anos de vida, a escrever as suas memórias. O filme são os Retratos Contados da protagonista.
Volta imensas vezes à sua infância, aborda as lutas políticas e as tragédias que lhe foram acontecendo ao longo da vida. O retrato épico e íntimo de uma mulher com um percurso fora do comum, que abalou a sua época por defender uma mensagem humanista de arrebatadora atualidade.
É aterrador pensarmos que a qualquer momento aquilo que damos como garantido pode deixar de ser.
Através da sua história são-nos relatados eventos cruciais do século XX, aos quais não podemos ser indiferentes.
Uma mulher extraordinária que eminentemente desafiou e transformou a sua época defendendo uma mensagem humanista ainda hoje profundamente relevante.
Ousou na política francesa, conhecida pelo facto de enquanto Ministra da Saúde ter defendido, em 1974, um projeto de lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez em França. Foi também a primeira mulher a presidir ao Parlamento Europeu. Foi membro do Conselho Constitucional da França. E não podemos esquecer o papel, fundamental, que desempenhou nas prisões.
Devia ser um filme recomendado para todas as famílias, escolas… para que os mais novos tenham noção da realidade daquela época e para que não existam retrocessos civilizacionais.
Uma grande mulher que jamais deverá ser esquecida.
Tu que sempre foste uma mulher independente, que podes comprar flores para ti mesma em vez de ficar à espera de quem as ofereça, que viveste em Paris, com Maria Lamas, outra grande mulher … Fala-me da importância das mulheres transformadoras da sociedade.
Bjs
Querido neto,
Gostei muito de ler o teu texto. Conheço mal Simone Veil, por isso o teu texto ensinou-me muitas coisas. Claro que foi uma mulher que influenciou o pensamento do seu tempo – mas quando eu estava em Paris ela ainda não era muito conhecida – ou então era eu, mais empenhada em atirar pedras aos polícias, no Maio de 68, que não pensava muito noutras coisas.
Mas muitas vezes são as mulheres (e os homens) que passam despercebidos que estão a fazer grandes coisas.
O grande poeta argentino Jorge Luis Borges diz isso na perfeição. Aqui te deixo um poema dele que explica tudo isso.
OS JUSTOS
Um homem que cultiva o seu jardim/
como queria Voltaire/ O que agradece que na terra haja música/
O que descobre com prazer uma etimologia/
Dois empregados que num café do sul /
jogam um xadrez silencioso/
O ceramista que premedita/ uma cor e uma forma/
O tipógrafo que compõe bem esta página/
que talvez nem lhe agrade/
Uma mulher e um homem que lêem /
os tercetos finais de um certo canto/
O que acarinha um animal adormecido/
O que justifica ou quer justificar/
um mal que lhe fizeram/ O que agradece/
que na terra haja Stevenson/
O que prefere que os outros tenham razão/
Essas pessoas/ que se ignoram/ estão a salvar o mundo.
Espero que gostes.
No entanto, reitero que ninguém pode esquecer a calamidade que foi o Holocausto, a importância de grandes mulheres, como Simone Veil, para a luta pela igualdade (ainda continuamos a anos-luz), pela luta pela despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (tema ainda muito controverso) e tantas outras causas.
Aproveita o fim de semana para leres o poema ‘Truca-truca’ escrito por Natália Correia, sobre a IVG, em 1982.
E como estou muito cansada – a ventania que anda por aqui deita-me abaixo – fico por aqui.
Bjs