Observo com atenção o pombo doente que se arrasta junto da sarjeta da Rua do Norte, no Bairro Alto, e não consigo encontrar nele nada de verdadeiramente convidativo para escrever umas páginas sobre os colegas da sua espécie. Tem o ar miserável de um sem-abrigo, um pedaço da cabeça já sem penas, um olhar mortiço e um andar cambaleante. Está vivo e isso parece ser a maior das suas virtudes. Já cheguei a estar sentado aqui na esplanada do Calcutá e cair-me aos pés um pombo morto por qualquer razão misteriosa de que só as caleiras dos prédios saberão o segredo.
Portanto, olho o pombo. Aceitemos que, ao contrário do que acontece com as suas primas rolas são uma ave mal fadada. O pombo olha-me por sua vez. É curioso o descaramento do olhar do bicho. Tem a expressão de que todas as ruas e travessas lhe pertencem. Atrevido, sem dúvida, vá lá saber-se porquê. Mas escarafunchemos a sua história ao longo de milhares de anos. Há quem seja apaixonado por pombos. Conheci duas personagens inimitáveis que adoravam pombos e os tinham às dezenas. O Torres, por exemplo. José Torres, o Bom Gigante. Uma vez fui a casa dele ali para os lados da Amadora e ele era tão grande que a casa parecia uma habitação para strumpfs. Ele sempre teve aquele estilo meio marreco, mesmo quando jogava, como se se desse o caso de ter de ser obrigado a erguer-se a todo o comprimento e esbarrasse nas nuvens ou assim. Dizem que tinha um metro e noventa e um. Ora tubérculos: isso já não é altura, é altitude! Ele ia para o jardinzinho que tinha nas traseiras abria as gaiolas punha-os a voar e com um apito e uma caninha dava-lhes ordens firmes e eles obedeciam. Eu ficava pasmado a olhar para aquilo sem saber ao certo o que escrever. O gigante e os seus pássaros. E um gigante encantado com um apito na boca. Pouco tempo depois dei de caras com uma história parecida mas que em vez de um gigante era protagonizada por um duende. Sim, Fernando Chalana era um duende. Com um metro e sessenta e cinco. Mas, atenção!, a sua autoridade sobre os pombos que tinha às ordens era inquestionável. Era o duende de Lorca com um apito na boca. Lembram-se? «Em toda Andaluzia, rocha de Jaén e búzio de Cádiz, as pessoas falam constantemente do duende e o descobrem naquilo que sai com instinto eficaz. O maravilhoso cantador El Lebrijano, criador da Debla, dizia: ‘Nos dias em que canto com duende não há quem possa comigo’; a velha bailarina cigana La Malena exclamou um dia, ao ouvir Brailowsky tocar um fragmento de Bach: ‘Olé! Isso tem duende!’, e aborreceu-se com Glück, com Brahms e com Darius Milhaud. E Manuel Torres, o homem com maior cultura no sangue que conheci, disse, escutando o próprio Falla tocar seu Nocturno del Generalife, esta esplêndida frase: ‘Tudo o que tem sons negros tem duende’. E não há nada mais verdadeiro». Chalana: o duende que dominava os pombos da vida, da sua vida tão exageradamente curta que só pode ter terminado nas asas de um pombo que o carregou para o azul infinito que fica por cima das nuvens.
Pombos de corrida
De vez em quando deparo-me com notícias de jornal que falam sobre as provas de columbofilia. Fascinante! São milhares de pombos que participam dedicados ao controlo dos que os criam e ensinam. Vou à procura do tipo de pombo que serve para este tipo de competições para tirar dúvidas sobre elas e sobre eles. Afinal há mais de 300 espécies de pombos espalhados por todos os continentes. Mais: um pombo devidamente tratado com todos os cuidados pode chegar aos 15 anos de vida. Uma inequívoca velhice pombalina. Debruço-me mais sobre as informações que, de um momento para o outro, já me inundam a secretária. Fico a saber que um bicho destes pode atingir uma velocidade de voo a roçar os 80 km por hora e percorrer 300km de distância sem necessitar de pousar. Enfim, é como ir de Lisboa ao Porto e não parar num posto de abastecimento. Ah! E são também os reis da natureza no que respeita ao sentido de orientação. Porquê? «A explicação mais provável indica que essas aves têm um acúmulo de átomos de ferro no cérebro, que funciona como uma bússola natural», escreveu num artigo o zoólogo Luiz Octávio Marcondes Machado, especialista em ornitologia. Está certo. Vou passar a tomar mais dessas cápsulas de ferro que parecem dar um jeitão para que não tem um GPS incorporado.
Claro que o pombo que tenho à minha frente na Rua do Norte só era capaz de chegar aos 80 km/hora se fosse atirado com toda a força do alto do prédio fronteiro e mesmo assim com uma ajuda indispensável daquela lei que afirma matéria atrair matéria na razão directa das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias. Aterraria já meio morto pelo que não me admira o seu ar desgovernado apenas contrariado pela malandrice que lhe espreita do canto do olho. (Olhem, se conseguirem, um pombo nos olhos – ou no olho já que têm um de cada lado.) Não consigo deixar de sentir algo de preverso naquelas córneas avermelhadas.
Nada de confusões!
Fixo-me no columbídeo. Não o confundiria com um pombo-correio nem que tivesse ordens divinas para o fazer e eu ligo pevas às ordens divinas. Na sua cabeça esgadanhada haverá, no entanto, o instinto da raça que também abençoa o pombo-papo-de-vento ou o pombo-rabo-de-leque. Aqui, onde está, provoca mais nojo do que outra coisa. Não a mim que não me enojo por dá cá aquela palha mas, por exemplo, ao senhor engravatado que lhe desfere um pontapé furibundo, falhando o alvo por completo e ficando à beirinha de um tombo que haveria de ser épico e destruiria o seu fato Príncipe-de-Gales. Nem pombo nem tombo. A ave desprezou-o. O homem mordeu a língua e resmungou: «Isto são ratos com asas!» Eu pensava que os ratos com asas eram os morcegos, mas adiante.
Psitacose: eis uma doença que se propaga entre aves desta espécie com a velocidade do fogo por entre campos de milho seco. E a espécie das aves são os psitaciformes que incluem 360 géneros diversos, desde o maldito pombo ao papagaio, do tucano à catatua, passando pelos periquitos, pelos maracanãs e pelos tuins, vejam bem. Os psitaciformes são geralmente reconhecíveis por terem dois dedos virados para a frente e dois para trás, algo que lhes facilita e muito agarrarem-se a pequenos ramos ou, se se der o caso, a poleiros, tal e qual acontecia com a arara da Casa das Conchas no Olival da minha infância. Bicho embirrento. E se a arara do Olival era embirrenta o que dizer das que nos pegam a odienta psitacose? Vou à enciclopédia e repito aqui por escrito como se fosse um papagaio: «A psitacose é transmitida por via respiratória, por meio da aspiração de poeira contaminada pelos dejectos de animais doentes ou portadores. A transmissão respiratória de pessoa a pessoa pode acontecer, mas é um evento raro e ocorre somente na fase aguda da doença. Uma vez no corpo do infectado, permanece incubada por um período de uma a quatro semanas e o período de transmissibilidade pode durar semanas ou meses». Caspite! E eu aqui a observar os movimentos trôpegos de uma dessas aves que não me restam dúvidas estar completamente atacado por tal incómodo.
Para tirar dúvidas, respiro fundo. «Sintomas característicos são febre, tosse, cefaleia e calafrios, acompanhados de comprometimento das vias aéreas superiores e inferiores, porém os pacientes com psitacose podem apresentar, ainda, epistaxe e esplenomegalia com quadro pulmonar semelhante a uma pneumonia atípica». Começo a entender a raiva do fulano da gravata e que não tinha jeito para biqueiradas.
Milagres do pombo…
Mas, ainda assim, volto ao pombo. Afinal decidi escrever uma crónica (quase ia classificá-la de pombalina) columbófila e preciso de estudar mais sobre os antepassados deste destroço alado que está, neste momento exacto, fascinado com uma côdea de pão no passeio onde assento as solas dos sapatos.
Columbofilia: eis um termo com o seu quê de divertido. Os columbófilos – e há muitos – são gente de competição. E combatem em corridas de pombos-correio. Um bom columbófilo pode estabelecer milagres. Autênticos milagres! Não acreditam? Fazem muito bem, também sou avesso a acreditar em milagres, mas o que dizer que um mamífero que consegue treinar um pombo de forma a que este voe a velocidades entre os 85 e os 105km por hora percorrendo distâncias de 1200 km?! Volto a olhar para o meu pombo da Rua do Norte e só de imaginá-lo a voar 1200km dá-me vontade de rir à gargalhada, pobre infeliz. Junho, que está quase aí, é um dos meses em que as provas de columbofilia bondam em Portugal. Talvez vá assistir a uma um destes dias, sem ter grandes expectativas de me cruzar com aquele pombo dos desenhos animados do Crazy Race que usava na cabeça um capacete de aviador. Parece que os actuais reis dos ares são uma mistura complexa de raças belgas e inglesas levadas a cabo na segunda metade do século XIX. Desculpem lá, mas por uma questão de decência e de camaradagem com o meu vizinho de rua vou deixar esse sanguinário desporto de tiro-ao-pombo fora desta crónica.
O «meu» pobre pombo…
Confesso que começo a sentir uma certa sensação de propriedade no que respeita ao pombo mal-enjorcado que saltita de um lado para o outro na Rua do Norte. Provavelmente amanhã encontrá-lo-ei já cadáver e repetidamente passado a ferro pelos pneus dos automóveis que por aqui ainda circulam. Basta olhar para ele para duvidar do seu instinto de sobrevivência, algo que os seus camaradas de raça têm para dar e vender.
Há que, pelo meio de tanta tergiversação sobre o pombo «in se», não esquecer a sua capacidade nutritiva. É muito bonito trazer aqui a importância que o pombo tinha para os habitantes da Mesopotâmia e para a sua deusa do amor, Inanna-Ishtar, ou as pombas sacrificadas nos altares de Afrodísia, ou a pomba que Noé enviou para fora da barcaça e acabaria por regressar com um ramo de oliveira no bico provando com isso que as águas tinham baixado, ou a dúzia de pombas que os pais de Jesus (Maria e José ou Maria e o Espírito Santo?) mandaram trucidar em honra do momento em que o pequenino Messias foi circuncidado, ou ainda o abrir de braços de Utanapistim soltando a pomba na Epopeia de Gilgamesh, uma versão mais sonante da aventura de Noé contra o dilúvio. Mas o pombo também tem sido um prato muito apreciado pelo todo-poderoso homem que até para canja lhe encontrou utilidade. Sim, estamos entre o sagrado e o profano, mas é esse o destino do columbídeo um dos bichos mais citados ao longo da História da Humanidade. Na religião islâmica, os pombos e outros pássaros da mesma raça são tão respeitados que se acredita terem auxiliado o profeta Maomé a distrair os seus inimigos quando este estava escondido na caverna Thaw’r e lhe permitiu dar início à Grande Hègira, ou seja a fuga para Medina que acabou por se estabelecer como o início do calendário islâmico. É evidente que os habitantes do Bairro Alto, como os de outros bairros antigos de Lisboa, se estão positivamente nas tintas para Noé, para Maomé e para a Epopeia de Gilgamesh. No que respeita a pombos sabem que se empoleiram nas caleiras e cagam na roupa que está pendurada a secar. Outros ainda resolvem bater as botas nas mesmas caleiras e entupi-las irritantemente nos dias de chuva. Lisboa é uma cidade cheia de pombos e toda a gente odeia pombos. Não vale sequer a pena lembrar à malta que o Espírito Santo é uma pomba e por causa dela se concebeu o Cristo. E eu também confesso, de olhos fixos no pombo cheio de doenças que anda aqui a debicar o passeio, que não o vejo assumir o papel de terceira figura da Santíssima Trindade. Por muito boa vontade que tivesse… mas nem isso tenho. Se vier chatear-me deste lado do passeio enxoto-o. Que se vá empoleirar na torre de uma igreja qualquer e faça queixa ao Todo-Poderoso. Afinal são a mesmíssima pessoa, não deve ser difícil que se entendam. Já o fizeram antes. Vá lá saber-se se para bem ou mal dos nossos pecados. Entendam-se outra vez!