Pedro Sánchez anunciou a dissolução das Cortes e a convocação de eleições para 23 de julho, num período que coincide com o início da presidência espanhola da União Europeia. A decisão foi tomada a partir de uma leitura nacional dos resultados das eleições regionais e municipais, que, segundo o chefe do Governo e líder socialista, exigem «uma clarificação.»
Sánchez provou, mais uma vez, que é um animal político capaz de se antecipar e moldar os acontecimentos mesmo nas circunstâncias mais difíceis. O seu anúncio, que terá tomado de surpresa ministros e parceiros de coligação, foi a notícia do dia pós-eleitoral. De uma assentada, bloqueou críticos internos, impôs às suas rivais à esquerda um prazo apertado para negociar uma eventual coligação e interrompeu a celebração à direita do ‘novo ciclo político’, lembrando ao PP os dilemas que tem pela frente. Em menos de 24 horas, o líder da oposição, Alberto Núñez Feijóo, oferecia «um pacto» ao PSOE, prevendo que a estratégia da esquerda para estas eleições será ‘nós ou a direita radical’.
Princípio do fim
Mas mesmo que a sorte proteja os audazes, é possível que esta jogada, ainda que salve a face de Sánchez, não seja suficiente para salvar o sanchismo.
Consciente de que tinha muito a perder (o PSOE governava em 10 das 12 regiões que foram a votos), Pedro Sánchez decidiu ter uma intervenção forte, apresentando promessas de investimento na habitação, educação e saúde, numa campanha cuja reta final foi marcada por escândalos e polémicas. Em Melilla, o PSOE foi implicado num esquema de compra de votos por correio liderado pela Coligação por Melilla. Em Mojácar, na Comunidade da Andaluzia, dois candidatos do PSOE foram detidos por participarem num esquema de compra de votos a imigrantes. E no País Basco a coligação EH Bildu, que apoia a coligação de governo nacional liderada por Sánchez, integrou nas suas listas 44 candidatos que haviam sido membros da ETA, todos acusados de atos terroristas e sete deles acusados de homicídio.
Na noite de domingo, com raríssimas exceções, as sedes do PSOE foram tomadas pelo desânimo. O partido de Sánchez perdeu 6 das 10 regiões que governava, e o PP foi o grande vencedor das autonómicas e das municipais.
Descritas pela oposição como um referendo à coligação de esquerda liderado por Pedro Sánchez, oas autonómicas indicam que os espanhóis querem uma mudança, e que a direita está bem posicionada para reconquistar o poder. Mas é preciso considerar dois pontos: primeiro, que as eleições autonómicas e municipais têm uma dinâmica própria, com resultados por vezes determinados por atores e soluções que não se reproduzem no plano nacional; depois, que em termos de captação de voto popular – que determinará as próximas eleições – a vantagem do PP sobre o PSOE é de 3,4%.
O entusiasmo que se viveu na Calle de Génova esconde uma possibilidade, que Sánchez fez questão de lembrar: é possível que sem o apoio do VOX, o PP não chegue à Moncloa. Ou, por outra, poderá até chegar, mas ficará refém da esquerda.
Madrid e a fórmula Ayuso
Um bastião dos populares, Madrid foi dos poucos sítios onde o PP conseguiu resistir, também graças à força que então tinham os recém-criados Ciudadanos, ao período de acelerado crescimento da esquerda com a irrupção do Podemos.
Nestas eleições, Isabel Diaz Ayuso batia-se pela maioria absoluta. A presidente da Comunidade fez campanha como se se tratasse de uma eleição geral e optou, mais uma vez, pelo confronto. Mais do que sublinhar os feitos da sua gestão, Ayuso sublinhou clivagens ideológicas e apelou à «derrota do socialismo.» No debate da Telemadrid, teceu duras críticas ao Governo: «Atacam a Coroa, a Constituição, a Transição que negoceiam com o Bildu (…) Atentam contra tudo isto e também contra Madrid constantemente, e esse é o grande problema que temos agora. Sánchez odeia Madrid e uma Espanha unida». A fórmula Ayuso, que não hesita em identificar o inimigo político à esquerda (e que alguns por cá dizem admirar, mas não conseguem, ou não querem, reproduzir) voltou a funcionar. O PP ganhou com maioria absoluta em Madrid, o VOX, contrariando a tendência de crescimento nacional, perdeu força, a esquerda fragmentou-se e o Unidas Podemos ficou sem representação. Questionada sobre o que significava para si da maioria absoluta e poder livrar-se do VOX, Isabel Diaz Ayuso respondeu: «Alegrou-me mais livrar-me do Podemos que do VOX».
Os resultados da Comunidade de Madrid também deixam avisos a uma esquerda fragmentada, onde se testavam novas fórmulas. Se a vitória de Ayuso era esperada, não era certo quem lideraria a oposição. O partido regional Más Madrid, que aspira a ser «casa comum dos progressistas», beneficiou do desgaste dos seus rivais à esquerda, e empatou com o PSOE em número de lugares na assembleia.
Um mapa azul-esverdeado
Havia quatro grandes incógnitas em campos de batalha cruciais: a Comunidade Valenciana, Aragão, Castela-Mancha e Baleares. Para o PP, conseguir formar Governo em qualquer uma destas regiões seria uma vitória importante que, simbolicamente, assinalaria o início de uma possível reconquista do poder.
A Comunidade Valenciana era o maior governo regional com liderança socialista, e a capital da comunidade foi um dos pontos de partida do caminho de regresso da esquerda ao poder, iniciado nas eleições autonómicas de 2015. Em 2019, a vitória foi para uma coligação de esquerda. Agora o PP foi a força mais votada e, dada a vantagem, é provável que opte por um governo minoritário, apostando no apoio pontual dos representantes do VOX.
Outra incógnita era Aragão, região descrita como o ‘Ohio espanhol’, i.e., quem ganha ali, ganhará em Espanha. E foi o PP o vencedor, derrotando uma coligação de esquerda juntando o PSOE, Unidas Podemos e o Partido Aragonês. Mas necessitaria do apoio do VOX para assegurar uma maioria.
Para o PSOE, manter Castela-Mancha era fundamental. A região é um bastião socialista e, para além da Extremadura, a única comunidade autonómica onde o PSOE governava sozinho. E, ainda que à tangente, esta foi uma das poucas vitórias da noite para os socialistas, que mantiveram a maioria absoluta.
Uma das regiões-chave para compreender as estratégias dos grandes partidos é a Extremadura, onde o PP se confronta com o dilema. Aqui o PSOE foi (ainda que por muito pouco) a força mais votada. No entanto, perdeu a maioria absoluta e a esquerda não soma. Mas a direita poderia somar: num cenário de acordo, PP e VOX, que se estreia na assembleia autonómica com 8.13 por cento dos votos, teriam maioria absoluta. A candidata do PP pediu ao PSOE que se abstivesse, permitindo a sua investidura. O PSOE já anunciou que votará contra, lembrando que, embora com o mesmo número de deputados, a sua foi a lista mais votada. O VOX poderia garantir a investidura, mas é pouco provável que o faça a troco de nada.
Finalmente, nas Baleares, as sondagens não eram conclusivas e a direita tinha a esperança de, depois de oito anos na oposição, voltar ao poder. E voltou, mas para governar com maioria precisará do apoio do VOX, que quase triplica a sua representação na região.
Núñez Feijóo tratava a (única) coligação do PP com o VOX, em Castela e Leão, como uma exceção incómoda herdada da liderança de Casado. E depois das autonómicas voltou a apresentar ao PSOE o seu acordo de «lista mais votada», um «manual de conduta para a formação de governos» determinando que a força que ficar em primeiro deve governar. Mas, para governar sem depender da esquerda, Feijóo teria de somar à exceção de Castela e Leão muitas outras. É que o mapa pintado de azul tem tons esverdeados: em seis comunidades autonómicas, o VOX é chave para a maioria absoluta.
Ensaio geral para ‘derrotar o sanchismo’
No encerramento da campanha em Madrid, o líder nacional do PP subscreveu a estratégia Ayuso, apontando o sanchismo como o inimigo e um perigo existencial para Espanha: «Entre as mentiras ou a verdade, a verdade. Entre violadores e vítimas, vítimas. Entre Bildu ou a dignidade, a dignidade. Entre o PSOE e a qualidade democrática, a qualidade democrática. Entre o sanchismo ou Espanha, Espanha».
Não sendo Feijóo o candidato mais popular entre o eleitorado do PP, o seu partido é o favorito a vencer as eleições gerais, num contexto político marcado pelo desgaste do Governo e por divisões entre as forças de esquerda. É pouco provável que, neste período curto, a esquerda se entenda e reorganize numa plataforma comum. E é evidente a tensão entre Pedro Sánchez e Yolanda Díaz, ex-militante comunista e Vice-Presidente do Governo, na competição pela liderança deste bloco. Mas a grande diferença entre PP e PSOE e entre Sánchez e Feijóo é que, no momento pós-eleitoral, o segundo não hesitará em fazer pactos para garantir o Governo.
Reagindo à antecipação das eleições, Núñez Feijóo pediu «uma maioria clara, uma maioria incontestável, uma maioria contundente para iniciar um novo rumo». E o seu discurso e orientações no rescaldo das eleições indiciam que, nesta fase, está mais empenhado em chegar a entendimento com o PSOE, no estabelecimento de um «manual de conduta», do que em negociar o apoio político do VOX.
Mas, apesar de Feijóo pedir a maioria, tudo indica que se manterá a fragmentação do sistema partidário à esquerda e à direita, embora mudem os atores. O balão de oxigénio do Unidas Podemos, contrastando com o seu enorme poder e projeção no executivo, esgotou-se, e o partido perde representação nas comunidades de Madrid, Valência e Canárias, e presença em cinco dos seis governos regionais que integrava. Outro derrotado é o Ciudadanos, que morre apenas oito anos depois de ter irrompido no sistema partidário espanhol: os centristas-liberais desaparecem de todos os parlamentos autonómicos. Dois vereditos que sugerem que os parceiros minoritários das coligações estão mais expostos a ser punidos pelos eleitores.
O dilema de Feijóo
Mas, além do PP, estas eleições tiveram outro grande vencedor. O VOX duplicou a percentagem de votos obtidos face a 2019, mais do que triplicou o número de vereadores, de 500 para quase 1700, e mais do que duplicou o número de deputados regionais. «Hoje o projeto político do VOX consolida-se como projeto nacional. E como partido absolutamente necessário para construir a alternativa ao socialismo, ao comunismo e aos seus sócios separatistas e terroristas», sublinhou Santiago Abascal, reafirmando o seu compromisso com o combate à esquerda. Mas o líder do VOX deixou um aviso aos populares, quando sublinhou o compromisso com os seus eleitores, avisando que não iria passar ‘cheques em branco’ nem aceitar ‘chantagens’. É provável que este discurso se consolide durante a campanha, comprometendo as expectativas dos populares de aceder aos votos do VOX sem contrapartidas.
O PP ensaiou o apelo ao voto útil, que repetirá nas próximas eleições com o objetivo de conquistar votos entre desencantados do PSOE, eleitores do Ciudadanos e até do VOX. Sendo o eleitorado de direita mais fiel, e numas eleições onde a esquerda se apresenta desgastada, é provável que o PP contrarie a estratégia Ayuso e oriente o discurso para o centro. Mas, num contexto de polarização ideológica e fragmentação partidária, esta pode ser uma estratégia arriscada.
Feijóo deu permissão aos eleitos para negociar pactos de Governo, embora a ideia seja atrasar as negociações o máximo possível e, sempre que possível, evitá-las. Se para a maioria dos eleitores do PP o parceiro natural de coligação seria o VOX, a direção do partido não está confortável com a ideia. Ao mesmo tempo, das urnas e do partido de Santiago Abascal chegam sinais de uma transição da fase de protesto para uma fase de participação no poder. E, tal como os espanhóis, provavelmente também Feijóo se confrontará chamado a fazer uma escolha no próximo dia 23 de julho: derrotar os socialistas ou depender deles.