“O trabalho surgiu na sequência de uma investigação que fiz: andei, essencialmente, à procura de quando a sardinha começou a ser o prato preferido nesta altura do ano. A pesquisa que fiz indica que, efetivamente, a sardinha não era o prato tradicional. Nos anos 20 e 30, ou até anteriormente, não havia o consumo da mesma para celebrar os Santos Populares”, começa por explicar Rui Pinto de Almeida, doutorando em Estudos de Cultura (Especialização em Comunicação e Cultura) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor do ensaio ‘As Festas de Lisboa: indução da Tradição’.
“Era um alimento normal, sobretudo nas camadas mais desfavorecidas da sociedade, sendo que o modo de cozinhar é até ancestral: o assado é anterior ao guisado, ao cozido e ao frito porque não precisa de cerâmica nem de qualquer recipiente. Salta da água para o fogo, podemos até filosofar à volta dos elementos. E do ponto de vista da comensalidade tem a vantagem da partilha: comia-se, muitas das vezes, no pão”, explica em declarações ao i. “Se recuarmos nas memórias de quem tem hoje 70, 80, 90 anos não é invulgar escutar-se que uma sardinha dividia-se por várias pessoas. Na atualidade, estamos num período de abundância alimentar, mas a nossa realidade era diferente. Foi isto que me fez ir à procura de dados e acabei por me socorrer do trabalho dos jornalistas porque não havia muito escrito acerca dos Santos Populares”, diz, lembrando que se comia pastéis de bacalhau, pratinhos de arroz doce, sanduíches e outros acepipes. Segundo a pesquisa, “feita no Diário de Lisboa, só noticia o consumo de sardinha assada no ano de 1968, e o Arquivo Fotográfico de Lisboa só apresenta registos de arraiais com sardinha assada a partir de meados da década de 60 do século passado”.
“Lisboa mudou muito. Há zonas da cidade que há 40 anos eram zonas de campo dentro da cidade. Havia grandes espaços baldios. E nesses espaços nasciam ervas selvagens, floresciam, e havia muitas plantas. Uma delas era a alcachofra e, portanto, existiam crenças em seu redor: se esmorecia significava x, se ficava vivaz significava y… Mas havia a matéria-prima para a crença. Era próxima dos bairros. Eu morava no Areeiro e tínhamos acesso a estes elementos da natureza. Hoje em dia, é muito mais difícil: as matérias-primas são escassas, já não se acredita nos mitos… Resta o manjerico”, adianta, avançando que “ninguém anda à procura de ver se o amor é para toda a vida, até porque o conceito de felicidade mudou”.
“As pessoas têm uma maior consciência dos seus direitos e a felicidade está ligada também aos mesmos. Se pensarmos que as mulheres nos anos 30, 40, 50, 60 e 70 saíam da tutela dos pais para ficarem sob a tutela dos maridos… Isso mudou. A mulher, na generalidade, já não pensa assim. Este conceito de procurar se uma flor resiste à queimadura já não faz sentido e as crenças mudam pelo conhecimento que existe. Há aqui várias coisas que se podem cruzar”, consolida, sendo que no ensaio lê-se que “ao chamuscar-se a flor de uma alcachofra pretendia verificar-se a viabilidade de um casamento. Queimando-se a alcachofra e enterrando-se num vaso que ficaria na noite de Santo António – ou de S. João, no Porto – ao relento, o casamento estaria garantido se a flor reflorescesse na manhã seguinte, o que indicava a manifestação da presença do Santo, ou seja, um índice”.
Mas existem mais vertentes no âmbito do simbolismo profano. Por exemplo, “a fogueira de Santo António remete para rituais de purificação pelo fogo. A pureza uma primeiridade, uma qualidade portanto, tem no fogo a relação de continuidade e contiguidade, porque o fogo é concreto e factual”, sendo que “o fogo é um índice da pureza, é uma segundeidade. O ato de passar por cima do fogo tem estabelecida uma associação de ideias de caráter geral que adquire um caráter simbólico”. Por outro lado, “as marchas populares que juntam o ser individual num corpo único, adestrado no movimento, no gesto e na palavra – canta-se em coro o refrão ou a letra completa da marcha -, simbolizando a unidade dos residentes de cada bairro”. “À noite, os habitantes deslocavam-se pelas ruas do seu bairro à luz de archotes e lampiões, arcos e balões iluminados. Eram os embriões das Marchas Populares que seriam instituídas a partir de 1932”, como escreveu Rui Pinto de Almeida.
E qual é o papel do Estado Novo nestas celebrações? Principalmente, em Lisboa? “O Santo António é um santo a quem as pessoas já recorriam, antes do Estado Novo, para resolver problemas. Atribuem-se-lhe milagres há muitos séculos. Era importante para uma grande comunidade. Faltava, no fundo, que um Estado laico reconhecesse este santo atribuindo-lhe um dia especial no seu calendário administrativo”, diz, sendo que, no ensaio, lê-se que “o culto de Santo António está repleto de ícones, índices e símbolos, uns de ordem religiosa, outros de origem profana e que, por esse motivo, sofrem transformações”. A título de exemplo, o livro “representa a fé, a sabedoria e o conhecimento das Escrituras” e o Menino Jesus “o amor a Deus Menino, mas igualmente o amor por todas as crianças e por todas as famílias. Ao Santo Doutor representado no Livro, junta-se o Santo Popular”. O alforge é o “símbolo da mendicância própria dos franciscanos, que aqui juntavam as ofertas recebidas para as partilhar com os pobres, doentes e confrades, sem nada guardar para o dia seguinte” e o líqrio ou açucena “a flor branca, representando a pureza e a castidade”.
“Ao consagrar um feriado para o Santo António, assinalando especificamente os 700 anos da morte do mesmo, começou a assinalar-se oficialmente a importância que tem para a comunidade. Já o Diário de Lisboa escrevia que era uma ‘dívida de gratidão’ que se tinha para com ele”, continua, acrescentando: “Há uma adesão muito grande a este dia. No entanto, ele só começa a ser um feriado municipal alguns anos depois. Faz parte da propaganda do Estado Novo considerar estas celebrações. Dar a possibilidade às pessoas de terem um escape”, salienta.
“Houve um aproveitamento ideológico da morte do Santo António. Inicialmente, assinalar a morte deste santo tinha esse propósito. Foi um homem importante e tinha esta característica de nos resolver os problemas mais esotéricos; e os mais terrenos seriam resolvidos por Salazar. É esta a leitura que podemos ter quando se institucionaliza isto”, sublinha, tendo realçado no ensaio que “é a partir da década de 50 do século passado que se atribuem apoios financeiros às coletividades que organizam os arraiais, deixando ao critério destas o tipo de decoração e de animação que pretendiam criar, assim como a gestão das receitas que, eventualmente, obtinham”.
“As coletividades têm importância para o próprio Estado Novo porque eram uma forma de controlar as pessoas. O controlo, na ditadura, é feito através de várias ferramentas que estão ao dispor do Estado. Hannah Arendt diz que só temos direitos enquanto o Estado assim o entender porque ele é que tem os meios para os suprimir. Nascemos com direitos fundamentais e o Estado respeita-os ou suprime-os. Durante a ditadura, e ainda recentemente em democracia, alguns direitos foram suprimidos. Na covid-19 tivemos direitos suprimidos em nome da proteção da saúde e da integridade física, mas o que é certo é que foram suprimidos: não estou a dizer se foi certo ou errado”, declara, afirmando que “as ditaduras são mais sofisticadas porque criam ferramentas: a censura, o controlo das atividades coletivas, etc. Dando dinheiro às coletividades, sabia-se aquilo que elas faziam. E não nos esqueçamos de que havia um número significativo de informadores. A troco de algum dinheiro, davam informações e a PIDE tratava do resto. Havia na sociedade portuguesa um controlo que era feito às pessoas e sabiam-no”.
Desse modo, “encontram-se assim estruturas que organizam os tempos livres dos trabalhadores como a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho – FNAT, ou que doutrinam a juventude através da Mocidade Portuguesa, ou orientam as famílias através da Organização das Mães para a Educação Nacional, as casas do Povo ou dos Pescadores, ou ainda através dos sindicatos nacionais. E cada uma destas estruturas tem uma propaganda setorial própria, com o seu espetáculo próprio: boletins, paradas, excursões, missas, acampamentos, bodos aos pobres, etc”, como Rui Pinto de Almeida explicita no seu ensaio.
De seguida, ressalva que “Portugal nos anos 30 e 40 assistiu a um grande espetáculo político-cultural: foram as grandes manifestações de apoio a Carmona e Salazar, os desfiles comemorativos e históricos, a Grande Exposição do Mundo Português e os congressos científicos que a acompanharam, as exposições coloniais, os pavilhões nas exposições internacionais, as encenações do fomento harmonioso, a evocação da grandeza do Império e dos seus heróis, a reconstrução da História do País – restaurada a partir do fio condutor do nacionalismo -, as paradas militares do Exército, da Legião e da Mocidade Portuguesa, e os desfiles navais no Tejo, as missas campais e as procissões solenes, as concentrações de Fátima, a bênção das tropas e dos edifícios públicos, o teatro e a ópera para o povo, as marchas populares, as comédias filmatográficas e os festejos dos santos padroeiros dos municípios portugueses”.