por João Paulo André
Químico
Já perdi a conta ao número de vezes que vi Dinner at Eight (1933), o filme de George Cukor. O final desta espantosa comédia dramática que retrata a alta sociedade nova-iorquina da época da Grande Depressão é inesquecível. Quando, depois de muitos imprevistos, os convivas finalmente se encaminham para a sala de jantar, estabelece-se o seguinte diálogo entre a loura platinada Kitty Packard (a sublime Jean Harlow) e a vetusta Carlotta Vance (a impagável Marie Dressler):
Kitty: No outro dia estive a ler um livro.
Carlotta [quase tropeçando]: Leu um livro?
Kitty: Sim. Era sobre civilização ou qualquer coisa assim. Um livro marado. Imagine que dizia que as máquinas vão substituir todas as profissões.
Carlotta [encarando-a]: Oh, minha querida, isso é algo com que nunca precisará de se preocupar.
Esta referência de Kitty Packard às máquinas que tomam o lugar dos humanos surge exatamente na década em que o escritor checo Karel Capek criou o termo ‘robot’, numa peça de 1921 intitulada R. U. R. Contudo, o desejo do Homem de produzir tais engenhos é muitíssimo mais antigo. Segundo a mitologia grega, o guardião de Creta era um autómato gigante, de bronze, chamado Talos. No século I, o matemático e mecânico Heron de Alexandria terá criado autómatos que simulavam animais e figuras humanas que se moviam, tocavam instrumentos musicais ou realizavam tarefas simples, como despejar água de um recipiente.
No século XVII, René Descartes, um dos pioneiros do mecanicismo – teoria filosófica de acordo com a qual o mundo natural, incluindo o corpo humano, é uma máquina que opera segundo as leis da física –, introduziu a teoria da dualidade mente-corpo: a primeira (res cogitans) era imaterial e encontrava-se separada do segundo (res extensa), sendo este entendido como uma complexa máquina material. Não surpreendentemente, no século seguinte verificou-se um renovado interesse pelas construções mecânicas miméticas dos seres vivos. Uma das criações mais notáveis da época foi um pato que ‘comia’ e ‘digeria’, da autoria do igualmente francês Jacques de Vaucanson. Conferir movimentos controlados a máquinas foi relativamente simples; fazer com que processassem informação, tal como faz a mente humana, revelou-se, porém, muito mais complexo. Com o avanço da tecnologia e da eletrónica no século XX, os autómatos evoluíram para formas avançadas, que, hoje em dias, encontram aplicações que vão desde brinquedos automatizados até robôs industriais e humanoides. Estes autómatos utilizam tecnologias como sensores, atuadores, programação e inteligência artificial para realizar tarefas complexas.
Agora que a dita inteligência artificial (IA) atingiu um nível que já nos impressiona (fascina e/ou assusta), o tema é, inevitavelmente, um dos mais quentes do momento. Composta por redes neurais artificiais e algoritmos, a IA tem a capacidade de aprendizagem automática, visão computacional, reconhecimento de padrões, processamento de linguagem natural e processamento de grandes volumes de dados (Big Data). Encontra já aplicação em áreas tão diversas como a tecnologia de informação, finanças, saúde, indústria, comércio, educação, recursos humanos, transportes e agricultura. Na ciência pode destacar-se o AlphaFold, um programa que prevê a estrutura 3D de proteínas a partir das suas sequências de aminoácidos. Da mesma forma, a partir da análise de grandes conjuntos de dados, como imagens, músicas, textos e outros tipos de informação de natureza artística, a IA pode aprender padrões, estilos e características específicas presentes nessas obras e criar novas ‘obras de arte’. Por exemplo, uma IA treinada em pinturas de artistas famosos pode criar novas pinturas semelhantes ao estilo desses artistas, ou, no caso de uma IA treinada em composições musicais, gerar novas músicas. Recorde-se o caso recente de Pseudomnesia, ‘fotografia’ vencedora de uma reputada competição, que, de imediato, o próprio autor revelou tratar-se de uma imagem gerada por IA.
Independentemente dos receios que possamos ter (ou vir a ter) – note-se que há poucas semanas, em Lisboa, Yuval Noah Harari disse que a IA é uma bomba atómica política que ameaça as democracias –, afigura-se, para já, que a asserção da experiente Carlotta de Dinner at Eight não se confirma na totalidade. Com efeito, proliferam já os chatbots projetados para manter diálogos sobre temas eróticos.