por Mário David
Vice-presidente do PPE 2005-2014
A semana começou com uma notícia que receávamos há uns tempos, mas que nem por isso deixou de ter um impato devastador: Silvio Berlusconi deixou-nos esta segunda-feira, 11 de Junho!
Figura controversa, marcou toda uma geração política europeia, não deixando ningúem indiferente. Marcou indelevelmente a sua época por várias razões: quatro vezes primeiro-ministro, com os seus 3339 dias como Presidente do Conselho foi o Chefe de Governo italiano que ocupou o lugar mais tempo das últimas décadas. Foi o primeiro líder indiscutível da direita europeia pós democracia-cristã, e o seu carisma e a força das suas convições fizeram que fosse o alvo principal das esquerdas europeias democráticas e das totalitárias, que viam nele o mais temível oponente dos seus desígnios hegemónicos.
Era impensável que um líder de direita que não fosse dum partido tradicional democrata-cristão, com a sua importante matriz sindical, não fosse um perigoso ‘fascista’ ou, no mínimo, o primeiro dos populistas.
Esta, aliás, a maior vitória do Il Cavaliere: ver o seu Partido ser aceite pela comunidade política primeiro, e, depois, as sucessivas coligações com a Aliança Nacional, a Lega Norte, a Lega e os Fratelli d’Itália serem também reconhecidas sem qualquer sobressalto democrático, apesar das críticas constantes na comunicação social ocidental e do Parlamento Europeu!
Obcecado por sondagens, qualquer conversa começava, inexoravelmente, por ele a apresentar as 2 ou 3 folhas de papel que trazia consigo com os dados da sondagem do dia, estivesse ele no Governo ou na oposição! Sondagens que ele encomendava diariamente, abrangendo um enorme leque de questões de modo a compreender, permanentemente, as flutuações dos sentimentos do eleitorado.
Tribuno brilhante, galvanisador de massas, frontal, inspirava uma confiança sem limites entre os seus apoiantes, que o idolatravam. Tanto quanto o receavam os seus opositores!
Conheci Silvio Berlusconi em 1998. Era então Secretário-Geral do Grupo do Partido Popular Europeu no Parlamento Europeu e fui encontrá-lo em Milão para convidar o Partido que fundara, a Forza Itália, a sair do Grupo ‘Gaulista’ e transferir-se para o PPE. Desde esse primeiro encontro fiquei cativado pela sua jovialidade, visão estratégica, sentido de humor, simplicidade, sagacidade e pragmatismo. E logo percebi que a nossa solicitação iria ter sucesso, sendo que ainda hoje a Forza Itália é um influente Membro do PPE.
Desde então, neste último quarto de século, tive o privilégio de ter privado com Silvio Berlusconi vezes sem conta, e de ter estabelecido uma relação de amizade para além da Política. São alguns dos muitos episódios que testemunhei que, como homenagem, quero partilhar.
Logo desse primeiro encontro recordo duas questões que lhe coloquei:
– porque se ‘mete’ um bilionário de sucesso na política? Respondeu-me candidamente: «Caro Amigo, sou italiano e bilionário, e quero continuar assim! Não posso permitir que a ‘sinistra’ (esquerda em italiano!) destrua o meu País!».
– na altura o expoente do pós-fascismo era a Aliança Nacional e Gianfranco Fini. Perguntei-lhe o que pensava dele. «Tenho total confiança em Fini, mas ele não confia no seu próprio Partido!». Como o tempo lhe veio dar razão!
Acompanhei várias vezes Marcelo Rebelo de Sousa a encontros com Berlusconi, a última das quais na véspera da demissão de Marcelo da Presidência do PSD. Chegados a um dos seus dois Palácios em Arcore, e depois de nos mostrar os singelos frescos que sua mulher pintara nas paredes, e dum almoço animado, Berlusconi propõe mostrar o novo vídeo promocional do seu Partido. Era grande a empatia e cumplicidade entre os dois líderes. Quando o visionamento termina, Marcelo dispara de imediato: «Está fantástico, quer o conteúdo, a dinâmica, a imagem, tudo! Podias emprestar-me a tua equipa para a próxima campanha do PSD». A resposta não é a que Marcelo esperava: «Impossível, é demasiado dispendioso!». O atual Presidente não desarma: «Mas nós temos meios!». Então vem a surpresa de Berlusconi: «Não posso porque sou eu que faço tudo: do guião ao casting, da escolha do decor à realização, da fotografia à edição e montagem, da sonorização, tudo mas tudo é concebido e feito por mim!». Nunca saberemos como acabaria este pedido já que Marcelo resignaria inesperadamente no dia seguinte…
O político nacional que mais interagiu com Berlusconi foi, sem dúvida, Durão Barroso. Com os dois na Oposição, ou como primeiros-ministros, ou mais tarde com Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia. Destaco as repetidas referências de Barroso à lealdade com que Berlusconi sempre cumpria os acordos que celebrava. Um Homem de palavra! E numa das visitas oficiais ao Palazzo Chigi, sede do Governo em Roma, o orgulho com que Berlusconi foi cicerone para que víssemos o resultado da reabilitação do Palácio. «Não havia verba no Orçamento do Estado, paguei eu os trabalhos de restauração».
Também várias foram as vezes em que Berlusconi foi o anfitrião na sua fantástica propriedade na Sardenha, com as suas inúmeras Villas e onde se inventaram tantas mentiras e mitos urbanos. Aí Berlusconi transfigurava-se e assumia uma das suas facetas preferidas: a de anfitrião informal, retomando o seu passado de cantor e entertainer de cruzeiros.
Era aí, na Villa Certosa, que gostava de receber os seus amigos. E, nas refeições que oferecia, o cerimonial repetia-se. Dia após dia, ano após ano. Onde quer que fosse, em Arcore, Milão, Roma, Sardenha, fosse em almoço ou jantar privado ou oficial, o repasto começava sempre, mas sempre, com uma travessa de pasta tricolor, com as cores da bandeira de Itália: verde (al pesto), branco (a la crème) e vermelho (al pomodoro)!
Para o fim deixei algo de extremamente importante onde se cruzam a Itália e Portugal. Porque essa História ainda não foi escrita, pouca gente sabe do papel fundamental de Silvio Berlusconi na eleição de Durão Barroso para Presidente da Comissão Europeia. Primeiro, na Cerimónia de Adesão dos 10 novos Estados Membros à União Europeia em Dublin a 1 de Maio de 2004, e quando Barroso defendia a candidatura de António Vitorino, ficou claro que para o PPE teria de ser um dos seus primeiros-ministros a assumir o lugar. Berlusconi vai então liderar, junto com Juncker e Martens, nesses meses de Maio e Junho, uma coordenação eficaz dos primeiros-ministros do PPE da ‘Velha Europa’ para garantir que o lugar fosse do PPE. O PM Eslovaco Mikulas Dzurinda garantia os PM do PPE dos novos Estados-Membros e Tony Blair os primeiros-ministros socialistas e é assim que nasce o consenso da nomeação de Barroso. Entre os dois Conselhos Europeus da primeira eleição de Barroso, Berlusconi foi fundamental, juntamente com Angela Merkel, na obtenção dos votos favoráveis de Gerhard Schroeder e Jacques Chirac. Estes não constituíam uma minoria de bloqueio mas Barroso não queria ser indigitado sem o apoio da Alemanha e da França.
Outro dos mitos que a narrativa ocidental tentou usar contra Berlusconi foi catalogá-lo como ‘anti-europeu’. Como compreender então que o seu número dois, António Tajani, tenha sido eleito como Presidente do Parlamento Europeu? E que a sua indigitação como vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Georgia Meloni e Matteo Salvini tenha sido justamente interpretado como a garantia pró-europeia do atual Governo transalpino. Tal não impede que a Comissão Europeia não mantenha discreta mas diariamente uma chantagem sobre o Governo Italiano com os 200 biliões de Euro do PRR a Itália, mas esse não é o tema de hoje.
Uma última referência para uma caraterística essencial do carater de Berlusconi: a sua lealdade para com os seus Amigos. Fossem eles Bettino Craxi (sim, a esquerda tenta esquece-lo!) ou Vladimir Putin! Pouco se valoriza que Silvio Berlusconi tenha referido que Putin o tinha desiludido, os seus detratores concentram-se somente na sua relação próxima com o lider do Kremlin.
Berlusconi partiu! Mas não nos deixou! Ficou o seu legado! O seu projeto, a Forza Italia, dificilmente sobreviverá. Mas os seus valores políticos, a sua tenacidade, a sua cordialidade, o respeito pelo seu adversário, são exemplos que devemos preservar. Escrevi este tributo com uma enorme comoção. Em mim deixa uma profunda saudade.