Migrações determinam agenda europeia no Magreb

Suécia considera ‘histórico’ o acordo político em torno do novo Pacto para as Migrações e Asilo. Mas a Polónia, a Hungria, Malta, Eslováquia e Bulgária opõem-se.

Num momento em que a imigração volta a gerar clivagens e tensões, tanto no domínio da política interna quanto entre os Estados-membros, Bruxelas fez da questão uma prioridade que dita os termos das suas relações com os países de origem e trânsito.

Em mais uma iniciativa da diplomacia migratória da UE, a presidente da Comissão Europeia, a primeira-ministra italiana e o primeiro-ministro dos Países Baixos estiveram na Tunísia, onde anunciaram um pacote de ajuda de mais de mil milhões de euros, e planos de investimento em infraestruturas digitais e energia. Por detrás da iniciativa está uma lógica transacional: se a Tunísia, em risco de colapso económico e financeiro, precisa da UE, a UE também precisa da Tunísia para implementar a sua estratégia de proteção de fronteiras e combate ao tráfico humano. 

 

‘Acordo histórico’

Foi alcançado no Conselho Europeu, com 21 votos a favor, um primeiro acordo político em torno do novo Pacto para as Migrações e Asilo. Para a Suécia, que assumiu este ano a presidência rotativa da UE, trata-se de um «acordo histórico». Mas as negociações foram difíceis e não houve consenso.

Uma questão que gerou atrito foi a introdução de um mecanismo de solidariedade «obrigatória, mas flexível» entre os Estados-membros. Em 2022, o número de pedidos de asilo aumentou 64% face a 2021, registando o maior número desde a crise de 2015-16. E um dos grandes objetivos do Pacto é reformar a política de asilo, redistribuindo a pressão, assegurando maior celeridade no processo e agilizando a transferência dos requerentes para países terceiros que sejam considerados «seguros».

Neste momento, a lei determina que cabe aos países de entrada gerir os processos de pedido de asilo. A determinação contribuiu para uma clivagem, mais geográfica do que política, entre os países da linha da frente do Mediterrâneo e Estados como a Hungria e a Polónia, que se opõem ao estabelecimento de quotas. A imposição de um mecanismo de solidariedade tem como objetivo a possibilidade de recolocar, dentro da UE, até 30.000 migrantes por ano, de forma a diminuir a pressão sobre os países da linha da frente, como a Itália e a Grécia.

Ao abrigo desse mecanismo, os Estados-membros poderão escolher uma de três opções: aceitar e integrar os requerentes de asilo, assegurar o seu retorno aos países de origem ou trânsito, ou pagar uma compensação financeira de 20.000 euros por cada pedido rejeitado. Seguindo a reivindicação da Itália, esse valor seria depositado num fundo comum destinado a financiar projetos de gestão das migrações fora da UE.

Países como a Polónia, a Hungria, Malta, Eslováquia e a Bulgária opõem-se a este mecanismo. O primeiro-ministro húngaro Viktor Órban acusou Bruxelas de «usar os seus poderes de forma abusiva» e o primeiro-ministro polaco Mateusz Morawiecki afirmou que «a relocalização forçada não resolve o problema das migrações, mas viola a soberania dos Estados-membros». O ministro polaco da Administração Interna, Bartosz Grodecki, lembrando que o acordo foi aprovado por maioria e não por unanimidade, disse que «não há solidariedade sem unidade» e que «um sistema de asilo que obriga à aceitação de imigrantes e impõe multas pesadas em caso de recusa não tem nada de solidário».

 

Implicações geopolíticas 

A questão migratória tem sido determinante na definição das relações da UE com os países de origem e trânsito, e a visita à Tunísia da presidente da Comissão, da primeira-ministra italiana e do primeiro-ministro dos Países Baixos deve ser analisada neste contexto.

Segundo os dados da FRONTEX, em 2023 a Rota do Mediterrâneo Central tornou-se o ponto de maior pressão migratória, com 42 165 entradas ilegais na UE entre janeiro e abril. Os principais países de origem dos migrantes que viajam por esta rota são a Costa do Marfim, a Guiné e o Egito. Como país de origem e trânsito, a Tunísia é um dos pontos de passagem para Itália e Malta através desta rota. 

Em Cartago, Mark Rutte sublinhou que «neste momento, as migrações são uma das questões mais importantes com que nos defrontamos», afirmando que um dos principais objetivos deve ser «acabar com o modelo de negócio cínico de traficantes e contrabandistas, que deliberadamente colocam vidas humanas em risco para obter lucro…». A primeira-ministra Giorgia Meloni lembrou: «A Tunísia é uma prioridade, porque um cenário de destabilização na Tunísia afetaria a estabilidade em toda a região do Norte de África, e essas repercussões chegariam inevitavelmente até aqui».

As entradas ilegais na União Europeia através desta rota aumentaram depois da queda do regime de Khadafi, quando o vazio de poder deu lugar à multiplicação de milícias e grupos de crime organizado que se financiam também pelo tráfico, extorsão e exploração de migrantes. 

 

Poder de alavancagem

Desde sempre os países recorreram à instrumentalização de movimentos migratórios com vista à obtenção de vantagens políticas, económicas ou estratégicas. Em maio de 2021, as autoridades marroquinas suspenderam a vigilância na fronteira com Ceuta durante dois dias, e mais de 10.000 migrantes, incluindo cerca de 1500 crianças, entraram ilegalmente em território espanhol. A decisão, que desencadeou uma crise diplomática, foi tomada como forma de retaliação depois do líder da Frente Polisario ter recebido tratamento num hospital espanhol. 

A posição estratégica de países como o Sudão, a Líbia, Marrocos ou a Tunísia ao longo de rotas migratórias tem-se traduzido em vantagens geopolíticas, aumentando o seu poder de alavancagem face à UE. Antes da visita oficial dos líderes europeus, na cidade de Sfax, que é ponto de partida dos migrantes para a Europa, o Presidente tunisino Kais Saied afirmou que a Tunísia «não iria aceitar tornar-se guarda fronteiriço de outros países» e acusou os países europeus de «serem rápidos a exigir o cumprimento da lei quando se trata de proteger os seus países» mas «mudarem o tom e as exigências» quando se trata dos países da margem sul. 

Mas na Tunísia, país de origem, trânsito e destino de fluxos migratórios, a questão das migrações também entrou no debate político interno, trazendo alguns dilemas. 

Em fevereiro de 2023, o Presidente Kais Saied disse que era necessário travar os fluxos migratórios vindos da África subsariana, num discurso que suscitou fortes condenações no continente, e não só. Kais Saied associou o aumento da imigração à criminalidade, e afirmou que as sucessivas vagas de imigração ilegal tinham como «objetivo não declarado» «considerar a Tunísia um país puramente africano, sem afiliação às nações árabes ou islâmicas». 

Na sequência dessas declarações, vários migrantes abandonaram o país, o Banco Mundial suspendeu o acordo de parceria com a Tunísia e o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano declarou que os EUA estavam «profundamente preocupados». Durante a vista a Tunes do porta-voz da CEDEAO, Kais Saied afirmou que «embora não tendo nacionalidade tunisina, os estrangeiros são nossos irmãos», mas sublinhou a soberania legal tunisina na definição do estatuto dos estrangeiros: «Acredito que nenhum país aceitaria jurisdições paralelas às jurisdições dos Estados».

Mas, para as autoridades tunisinas, a emigração também constitui uma válvula de escape, num contexto em que uma população jovem e urbana com poucas oportunidades económicas representa, para os incumbentes, uma potencial fonte de instabilidade e contestação. Segundo um relatório sobre a migração internacional realizado pelo Instituto Nacional de Estatística tunisino em colaboração com o Observatório Nacional de Migração, os candidatos à emigração são sobretudo homens jovens (15-24), solteiros, instruídos e sem ocupação profissional, que elegem como destino final a França (41,7%), a Itália (10,3%), a Alemanha (9,5%) ou, fora da Europa, a Arábia Saudita (10,7%).

 

Risco de colapso 

No país onde quase houve uma transição democrática, e mais de uma década depois da Revolução de Jasmim, a situação política e económica é difícil. Em 2019, depois de um período de volatilidade e fragmentação (nove primeiros-ministros desde 2011), o Presidente Kais Saied foi eleito com 72,71% dos votos e iniciou um processo de centralização e personalização do poder, mediante a aprovação, em referendo, de uma nova constituição que enfraqueceu o legislativo e reforçou os poderes do executivo. 

O facto de apenas 11% do eleitorado ter participado nas eleições legislativas de 2022-23 e o aumento da repressão política suscitaram várias críticas ao regime tunisino. Mas, no país de Bourguiba e Ben Ali, a imagem de um ‘homem forte’ continua a ser apelativa para muitos cidadãos. 

Na frente económica, a situação continua a deteriorar-se. Esta semana, a Fitch voltou a baixar o rating da Tunísia, evidenciando a possibilidade de colapso financeiro, num contexto de crescimento anémico, inflação, elevada taxa de desemprego (37,8% entre os jovens), colapso dos serviços públicos e em que o pagamento de salários consome 60 % da despesa pública. 

Em 2022, o Presidente tunisino rejeitou as condições do FMI para um programa de resgate financeiro no valor de 1,9 mil milhões de dólares. Saied disse que as condições, que incluíam a retirada de subsídios a produtos como a farinha ou a gasolina, a privatização de empresas públicas ou cortes na administração pública, eram «ditames estrangeiros inaceitáveis, que só trariam mais pobreza». Esta semana, o governo tunisino anunciou que está a preparar uma proposta alternativa para apresentar ao FMI. O secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, disse que a proposta seria «muito bem-vinda», lembrando que «é evidente que a Tunísia precisa de mais assistência financeira para evitar cair num abismo económico». 

O apoio de Washington e dos líderes europeus, que receiam as consequências de um cenário de instabilidade no país, é crítico para a Tunísia aumentar o seu poder negocial face ao FMI. Como é importante a cooperação estratégica com Itália, que tem uma agenda ambiciosa para África. Mediante a implementação do Plano Mattei, que será conhecido em outubro, a Itália pretende posicionar-se como porta de entrada da energia africana na Europa. 

Como resulta evidente desta visita, a interdependência entre a UE e os países do Norte de África aumentará nos próximos anos. Assim como as oportunidades, e os riscos, que lhe estão associados.