Covid-19 “Vai ficar tudo bem”… Será que ficou?

A 2 de março de 2020 eram confirmados, em Portugal, os primeiros casos de contágio pelo novo coronavírus. Será que ficou mesmo tudo bem como era esperado?

Durante o primeiro período de confinamento na Itália, as escolas e creches estavam fechadas, e as crianças passaram a fazer desenhos em casa. Esses desenhos, que poderiam ter sido apenas rabiscos sem significado, ganharam um novo sentido. Centenas de crianças desenharam cartazes e pintaram lençóis com a mensagem “Andrà tutto bene” (”Vai ficar tudo bem”), acompanhada de um arco-íris ou do contorno das mãos. Essas obras de arte foram penduradas nas janelas, que eram o único acesso ao mundo para muitas pessoas, ou compartilhadas pelos pais nas redes sociais.

Essa atividade não apenas ocupou o tempo das crianças, mas também trouxe uma mensagem de união e esperança. A frase “Andrà tutto bene” começou a circular nas ruas de Brescia por meio da poesia de Luciana Landolfi, uma escritora e poetisa que escreveu a frase em post-its. A mensagem espalhou-se em folhas, cartolinas e adesivos por toda parte. No dia anterior ao decreto de confinamento obrigatório na Itália, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou oficialmente a existência da pandemia do novo coronavírus. A OMS previu um aumento no número de casos, mortes e países afetados nos dias e semanas seguintes. A prioridade era conter a disseminação do vírus, e o Governo italiano tomou medidas de emergência semelhantes.

Os portugueses também abraçaram as medidas de confinamento – que, ao longo dos meses, foram sendo conhecidas de cor e salteado, e também alteradas, como o confinamento dos contactos de risco, a recomendação de teletrabalho, os limites de lotação em estabelecimentos, equipamentos e outros locais abertos ao público ou a exigência de apresentação de certificado digital – num esforço para respeitar as orientações das autoridades e demonstrar compaixão durante o início da pandemia. Afinal, a 2 de março de 2020, eram confirmados os primeiros casos de contágio pelo novo coronavírus em Portugal. 

A principal causa de morte na União Europeia em 2020, ano em que a pandemia chegou à Europa, foram as doenças cardiovasculares, a covid-19 ficou em terceiro, segundo dados da Eurostat, divulgados em março deste ano. Apesar do lema “vai ficar tudo bem”, a verdade é que não ficou. A título de exemplo, o projeto ‘VD@Covid19’ da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa divulgou os resultados da sua pesquisa e foram assustadores.

Durante a pandemia, 34% das pessoas entrevistadas revelaram ter sido vítimas de violência doméstica pela primeira vez. Apenas 15% dos entrevistados relataram a ocorrência de violência doméstica entre abril e outubro de 2020, sendo que a percentagem de mulheres (15,5%) que relataram foi maior do que a de homens (13,1%). Sabe-se também que 72% das vítimas não denunciaram nem pediram ajuda durante os sete meses de pandemia em que o estudo foi realizado. A coordenadora do estudo, Sónia Dias, afirmou em comunicado que esses resultados indicam a complexidade da violência doméstica e de género durante a covid-19, ressaltando a necessidade de aprofundar aspetos como o perfil das vítimas, o tipo de violência, novas vítimas e a distribuição geográfica.

Por outro lado, aproximadamente 10% das crianças inquiridas num estudo sobre famílias em isolamento social mostraram padecer de índices de ansiedade acima daquele que é considerado funcional, sendo que pais ou cuidadores com mais ansiedade, stresse ou depressão têm filhos mais ansiosos. Estas são conclusões de um estudo levado a cabo por uma equipa do Instituto de Apoio à Criança (IAC) que procurou perceber “O que pensam e o que sentem as famílias em isolamento social” no âmbito da pandemia de covid-19, tendo participado 807 famílias com filhos com idades entre os quatro e os 18 anos. Naquilo que diz respeito aos níveis de ansiedade, stress e depressão dos pais ou cuidadores e os níveis de ansiedade das crianças, a conclusão foi que, em média, os resultados estavam dentro dos valores normativos para a população portuguesa. 

Contudo, verificou-se que num grupo de 112 pais havia níveis de ansiedade, stresse ou depressão severos ou muito severos, enquanto “em relação às crianças foi possível constatar para 43 (9,8%) um nível de ansiedade acima do considerado funcional”. “No que diz respeito à ansiedade sentida pelas crianças, estas manifestaram níveis mais elevados nas situações em que as rotinas familiares sofreram alterações e níveis mais baixos de ansiedade quando praticaram exercício físico, podendo esta ser considerada uma estratégia adaptativa”, lê-se no estudo.

E, a nível internacional, há realidades ainda mais perturbadoras. O aumento do desemprego no ano da pandemia ou o encerramento de escolas contribuíram para a propagação do trabalho infantil, que afeta 160 milhões de crianças no mundo, deixando mais longe o objetivo da sua erradicação até 2025. O alerta foi dado por várias organizações, no Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, apelando à necessidade e urgência de agir, em 2021. Os níveis mais elevados de pobreza instalados em muitas famílias pela covid-19 favoreceram o aumento do trabalho infantil e, em particular, do trabalho infantil perigoso, especialmente na América Latina e nas Caraíbas, alerta a Organização das Nações Unidas (ONU). 

O trabalho infantil aumentou pela primeira vez em 20 anos e a pandemia ameaça empurrar mais nove milhões de crianças para o trabalho infantil até 2022, adverte as Nações Unidas. Para o erradicar até 2025, o progresso global teria de ser quase 18 vezes mais rápido do que nas duas últimas décadas. Segundo o relatório da Unicef e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apresentado esta semana, os maiores aumentos de casos verificam-se entre as crianças dos 5 aos 11 anos – mais 16,8 milhões do que em 2016.

Naquilo que diz respeito à criminalidade, em território nacional, esta aumentou 14,1% com o registo de mais 42.451 participações relativamente a 2021, enquanto em comparação com 2019 verificou-se uma subida de 2,5%. A criminalidade violenta e grave subiu 14,4% no ano passado em relação a 2021. Já em comparação com 2019, verifica-se uma tendência descendente dos crimes graves e violentos. Em relação à criminalidade violenta e grave, segundo o relatório, verificou-se no ano passado um aumento de 14,4% face a 2021, mas em relação 2019 registou-se uma descida de 7,8%. “Em termos comparativos de pós e pré-pandemia, a tendência relativa a crimes graves e violentos prossegue ainda numa curva descendente”, disse Paulo Vizeu Pinheiro, considerando que “importa manter os níveis de vigilância e evitar complacências”. O relatório mostra que, entre os crimes que mais subiram em 2022, constam o roubo na via pública e roubo por esticão, que representam 53% da criminalidade violenta e grave. Naquilo que concerne o crime de violência doméstica, este continua a receber especial atenção das Forças de Segurança, já que apresenta uma subida de 15%, em relação a valores anteriores (+3.968 casos do que em 2021). A criminalidade grupal teve uma subida de 18% (+898 participações), e a delinquência juvenil aumentou 50,6% em relação a 2021, com mais 567 participações.

Mas também houve coisas que acabaram por correr bem. Durante a pandemia de covid-19, as restrições e medidas de distanciamento social foram implementadas em Portugal, afetando a realização dos Santos Populares. Em 2020, as festividades foram significativamente reduzidas e, em muitos casos, canceladas ou adaptadas para se adequarem às diretrizes de segurança e saúde pública. Em 2021, com a evolução da situação da pandemia, algumas restrições foram aliviadas, permitindo a realização de eventos ao ar livre com capacidade limitada. Isso possibilitou a celebração dos Santos Populares em algumas áreas, mas com modificações para garantir o distanciamento social e outras medidas de segurança. No entanto, as festividades ainda foram afetadas em muitas regiões, com eventos cancelados ou restritos. Em 2022 e este ano os Santos Populares voltaram a ser celebrados com pompa e circunstância.

E o mesmo se pode dizer de outros grandes eventos ao ar livre como concertos. Ainda no passado mês de maio, o Estádio Cidade de Coimbra recebeu os Coldplay, juntando mais de 200 mil pessoas em quatro datas. Tal teria sido impossível no decorrer do pico da pandemia. Apenas os Pink Floyd em 1994, os U2 em 2010 e Ed Sheeran em 2019 tinham conseguido esgotar dois concertos em estádios portugueses.

E a vontade de ir viver para o campo? Bom, sobre essa, ainda não há grandes conclusões. De acordo com o estudo Bloom Consulting Portugal City Brand Ranking 2021, mesmo durante a pandemia, Lisboa manteve-se como o melhor município para se viver, seguido pelo Porto, Cascais, Braga e Coimbra. No entanto, o estudo também revelou uma tendência de mudança, com um número significativo de pessoas a considerar deixar as grandes cidades em busca de uma vida no campo. Cerca de 29% dos portugueses que viviam em áreas urbanas manifestaram disponibilidade para mudarem-se para áreas rurais, enquanto apenas 10% da população rural expressou desejo de se mudar para a cidade. Essa mudança de perspetiva é impulsionada por diversos fatores, como a busca por tranquilidade, insatisfação com a habitação ou município atual devido à falta de espaço ou custo de vida elevado, e a procura por uma melhor qualidade de vida próxima da natureza (extremamente valorizada no decorrer dos sucessivos confinamentos). O estudo também destacou a importância da habitação e da qualidade de vida na decisão de mudança. Além disso, o estudo também revelou mudanças no setor do turismo. Destinos mais urbanos perderam um pouco de destaque, enquanto regiões mais alternativas e rurais se afirmaram, especialmente aquelas que oferecem experiências de natureza. Destinos como os Açores e a Madeira, que apresentam uma oferta ligada à natureza, saíram reforçados da pandemia. O turismo transformou-se e há novas oportunidades de investimento imobiliário para receber turistas.