24 horas Le Mans. Longa maratona para a glória

Ao longo de 100 anos travaram-se lutas intensas, criaram-se lendas e perderam-se heróis no templo da velocidade. Por tudo isso, as 24 Horas Le Mans são a corrida do século.

por João Sena

Le Mans continua a fazer parte do imaginário de qualquer piloto. Vencer a maior e a mais veloz corrida do mundo é ter a certeza de que o seu nome fica na história do desporto automóvel. Mas não são só os pilotos que procuram a glória nesta pequena cidade francesa, situada na região de Loire. Os maiores construtores mundiais já investiram muito tempo e dinheiro para vencer as 24 Horas Le Mans, mas poucos o conseguiram.

Pilotos fantásticos e carros espetaculares fazem parte da história da mais importante prova de resistência desde 1923. Nesse ano, o Automobile Club de l’Ouest (ACO) organizou a maior corrida do mundo com o objetivo de comprovar a fiabilidade e resistência dos automóveis da época. O circuito inicial tinha 16 quilómetros, mas foi tendo alterações por questões de segurança: atualmente tem 13,6 km de extensão e utiliza estradas públicas e uma parte do traçado de MotoGP. A corrida só não se realizou em 1936 devido a uma greve geral em França e no período entre 1940 e 1948 em consequência da Segunda Guerra Mundial – o traçado foi adaptado para pista de aviação.

A primeira edição contou com 33 equipas, constituídas por dois pilotos, que alinharam com carros rigorosamente de série e de acordo com as indicações do catálogo da marca, era esse o espírito de Le Mans. Os franceses André Lagache e René Leonard, ao volante do Chenard-Walcker Sport, venceram a corrida ao completar 128 voltas a uma média de 92 km/h. Para a história ficam os feitos de Brasier e Berliet, que concluíram as 24 horas sem mudarem um único pneu, e o facto de terem desistido apenas três equipas. A edição de 1926 ficou igualmente na história por ser a primeira em que o vencedor, o Lorraine-Dietrich, ultrapassou os 100 km/h, fez exatamente 114 km/h de média.

O regulamente do ACO evoluiu rapidamente e as 24 horas tornaram-se numa grande competição automóvel e um laboratório para os construtores. A primeira década foi dominada pelos “Bentley Boys”, que conseguiram cinco vitórias. Seguiu-se o domínio da Alfa Romeo. A Ferrari obteve a sua primeira vitória em 1949 graças a Luigi Chinetti, que conduziu durante 23 horas e meia porque o seu colega Lord Selsdon abusou no conhaque e não estava em condições de conduzir o 166 MM. As loucuras continuaram e, no ano seguinte, a família Rosier ganhou a corrida com o Talbot Lago T26, tendo o pai Louis Rosier conduzido durante as 24 horas – o seu filho apenas fez duas voltas porque era muito lento.

Nos anos 60 assistiram-se a lutas fantásticas entre Ferrari e Ford, com a marca italiana a vencer entre 1960 e 1965 e o construtor norte-americano a triunfar entre 1966 e 1969. Uma das tradições que era a partida em espinha foi abandonada por ser perigosa. Para não perder tempo, os pilotos arrancavam sem apertar os cintos de segurança – só o faziam depois da primeira volta, mas aconteceu o pior a John Woolfe, que sofreu um violento acidente no início da corrida e teve morte imediata. A década de 70 ficou imortalizada pelos duelos entre os Porsche 917 e os Ferrari 512, talvez das máquinas mais fantásticas que passaram por La Sarthe. Os anos 80 começaram com um feito único: Jean Rondeau, natural de Le Mans, venceu a prova com um protótipo construído por ele.

O aparecimento do Grupo C trouxe uma nova ordem com a Porsche a dominar o campeonato do mundo de resistência, incluindo a prova do ACO, entre 1981 e 1987. A entrada no novo milénio assistiu ao domínio da Audi, que em 15 anos obteve 13 vitórias. Mais recentemente, foi a vez da Toyota dominar cinco edições seguidas, só foi derrotada este ano pela Ferrari.

 

Performance pura

O traçado de La Sarthe tem várias zonas de cortar a respiração, nomeadamente a longa reta das Hunaudières onde, antes da introdução das chicanes, os pilotos atingiam 407 km/h durante um minuto. Era um “voo” de cinco quilómetros alucinante e perigoso, onde alguns perderam a vida. Numa altura em que correr em Le Mans era como andar sobre o fio da navalha, 22 pilotos perderam a vida neste traçado, metade na longa reta das Hunaudières. Em 1955 deu-se a maior tragédia quando o Mercedes 300 SLR de Pierre Levegh se despistou, entrou pelas bancadas a 200 km/h, incendiou-se (partes da carroçaria em magnésio facilitaram o incêndio), matou 84 espetadores e feriu 180. Em consequência desse acidente, a Mercedes retirou-se do desporto automóvel e só regressou em 1989, e a Suíça proibiu as corridas por serem perigosas, uma interdição que ainda hoje se mantém, exceto para carros elétricos.

Durante 24 horas, pilotos e máquinas entregam-se a lutas roda com roda a velocidades impressionantes, e até já houve protótipos a rodar a 407 km/h (o recorde pertence ao WM-Peugeot em 1988). Para vencer a longa maratona é necessário ter meios técnicos e humanos adequados à exigência da prova. Ao longo de um século tornou-se célebre a ideia de que é Le Mans que escolhe o vencedor. Este ano a escolha recaiu sobre o Ferrari de Alessandro Pier Guidi, James Calado e Antonio Giovinazzi numa prova que ficou marcada pela alternância de líder e por muitos acidentes. Há 59 anos Jean Guichet e Nino Vaccarella venceram a prova com o 275P, no que seria a última vitória da Ferrari até este ano. Numa prova de 24 horas existem aspetos que influenciam o desempenho dos pilotos e fazem parte do encanto e da imprevisibilidade da prova. Se durante o dia tudo é normal, conduzir à noite, muitas vezes com chuva, as ultrapassagens aos mais lentos fazem a diferença entre os homens e os meninos. Não é por acaso que os pilotos mais lentos vão menos vezes para a pista: à noite só andam os melhores. O recorde de vitórias é do dinamarquês Tom Kristensen, com 9 triunfos entre 1997 e 2013. Já o recorde de vitórias por construtores é detido pela Porsche, com 19 triunfos. O recorde da distância foi batido pelo Audi R15 TDi em 2010, que completou 397 voltas e percorreu 5.410 quilómetros.