por Nuno Melo
A história é um contínuo, feita de virtudes e defeitos, que tem de ser lida no seu tempo. Interpretar factos e retirar deles consequências, na base de um filtro do século XXI, desgarrado das mentalidades, dos valores e das referências de cada momento, é ridículo e absurdo. A conversa à volta de perdões e reparações carregada de complexos de culpa alheia, tem pouco de sincero, muito de político, é sectária na linha do tempo, está cheia de equívocos e preconceitos e tem nas baias da cultura woke o principal fermento.
Sem inocência, o tema vai sendo circunscrito ao fenómeno da escravatura e do colonialismo, referenciados a partir do período dos descobrimentos, que teve portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses e franceses à cabeça. A primeira pergunta que se tem de fazer é: onde fica tudo o resto?
Quando os alemães pedem desculpa pelo nazismo e o holocausto, fazem-no, conscientes de que trucidaram padrões civilizacionais consolidados ao tempo dos próprios atos que praticaram.
Já a escravatura e o colonialismo não nasceram no século XV. Aconteceram desde o berço da humanidade, em dinâmicas sucessivas de conquista e domínio, aceites em praticamente todos os continentes.
Assírios e babilónios escravizaram pessoas. Todo o império romano viveu de mão de obra escrava. Atenas escravizava os prisioneiros de guerra e em Esparta acabavam propriedade da cidade-Estado. Alguém exige a iraquianos, kuwaitianos, sírios, turcos, italianos ou gregos, perdões pelas dores desses primórdios?
No século I, milhares de eslavos foram escravizados e vendidos pelo rei germânico Otto I nos Balcãs, do mesmo modo que outros povos foram escravizados por eslavos em guerras travadas contra o Império Bizantino. Quem responderia por isso?
Na Ásia não faltou escravatura. Houve árabes que traficaram escravos na Península Ibérica, no território que hoje corresponde à Rússia, no Oriente Médio, na Índia e em África. Não faltaram igualmente europeus brancos cativos no que hoje é o Magrebe e mais a Sul.
Os portugueses escravizaram? Claro. Do mesmo modo que povos africanos escravizaram outros africanos e foram os principais parceiros dos portugueses e de muitos outros nesse comércio. Que países africanos, a par de Portugal também têm de pedir desculpa?
Já agora, convirá recordar que Portugal foi, com o marquês de Pombal, o primeiro país a emancipar escravos, sendo que a Mauritânia só aboliu a prática em 1981 e apenas a criminalizou em 2007.
Significa que a pedirem-se desculpas, dificilmente ficaria alguém de fora e a catarse teria de ser coletiva, à escala da própria humanidade. Também não se vê motivo para fixação de prazo prescricional algures em 1415.
Devemos ter orgulho da nossa história, dos muitos feitos, com consciência de defeitos. E quanto aos territórios do velho Império, não temos de reparar coisa nenhuma, do mesmo modo que não exigimos reparações de quem quer que seja, por incursões que ao longo dos séculos nos destruíram património e subtraíram bens.
Das províncias ultramarinas nasceram países, neles forjaram-se identidades e em todas ficou a língua, a cultura comum, redes de caminho de ferro, aeroportos, aldeias, vilas e cidades. O tempo é de olhar para a frente e o futuro. Não para trás, desperdiçados em esforços psicanalíticos, à boleia das agendas da moda.