Droga: Necessidade de revisão estruturada das políticas

As leis anti-droga são uma ‘manta de retalhos’ há vários anos, tornando-se necessário estabelecer coerência entre princípios opostos radicados na legislação de 1993 e na de 2000 e subsequente.

por A. Lourenço Martins
Juiz Conselheiro do STJ Jubilado, ex-Presidente do OICE das NUs

1. Mau grado todas as medidas projetadas e aplicadas para contrariar o tráfico e consumo de drogas ilícitas – a nível internacional e nacional – reconhece-se por toda a parte que este flagelo não é contido em termos satisfatórios e continua a provocar danos enormes às pessoas e famílias, ao mesmo tempo que grupos de criminosos prosperam sobre a miséria que provocaram.

Tal é confirmado pelos Relatórios mais recentes, a nível mundial o do Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes (OICE), divulgado em 9.03.2023 e, a nível europeu, o do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT), tornado público em 16 do corrente mês, dos quais recolhemos alguns tópicos. E o que nos dizem de essencial?

 

2. No Relatório do OICE: enfatiza-se a explosão mundial do tráfico ilícito de cocaína, consumida num maior grau de pureza, o que se traduz numa ameaça crescente para a saúde pública; continua a cultura e produção de ópio em grande escala no Afeganistão, apesar da interdição anunciada pelas atuais autoridades de facto (Talibãs, desde agosto de 2021); pretende-se que a legislação, as políticas e as práticas nacionais não assumam um caráter discriminatório para as pessoas que fazem uso de drogas; que uma atenção particular seja dedicada aos consumidores de droga que apresentam perturbações de saúde mental, evitando a sua exclusão social.

 

3. No que toca à Europa, o OEDT, com sede em Lisboa, viu recentemente a Comissão propor o reforço das suas competências, com vista a transformar-se na Agência Europeia das Drogas (em 2024), de modo a desempenhar um papel mais determinante na resposta aos desafios atuais e futuros do fenómeno das drogas. Aliás, a produção, o tráfico e o consumo de droga não foram significativamente afetados com a pandemia de covid-19, durante a qual se observou uma maior adoção de novas tecnologias para facilitar a distribuição de droga, retomando-se de pronto a sua extensão.

No Relatório do ano anterior (2021) já se afirmava que os efeitos do fenómeno da droga estão praticamente em todo o lado, adensando outras questões importantes, como a condição dos sem-abrigo, a gestão de distúrbios psiquiátricos e a criminalidade juvenil. Reitera-se agora que a disponibilidade da maioria das substâncias ilícitas continua elevada em todos os tipos de substâncias, sendo o mercado hoje caracterizado também pela disponibilidade relativamente ampla de uma gama alargada de medicamentos e de substâncias psicoativas, disponíveis em alta potência ou pureza. Cada vez mais, surgem novas drogas sintéticas, para as quais o conhecimento sobre os riscos para a saúde é muitas vezes limitado.

A canábis continua a ser a droga ilícita mais consumida na Europa – estima-se que cerca de 8 % dos adultos europeus (22,6 milhões com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos) tenham consumido canábis no último ano, sendo responsável por quase um terço das admissões para tratamento. Em maio de 2022, apareceu o primeiro canabinóide semissintético, o hexaidrocanabinol (HHC).

A cocaína é na região a segunda droga mais frequente, estando envolvida em cerca de um quinto das mortes por overdose em 2021. Se é ainda baixa a preocupação de saúde com o uso de óxido nitroso entre jovens, também conhecido como gás hilariante, já o receio com os novos opioides sintéticos, nomeadamente os potentes derivados do fentanil estão a tornar-se nos EUA o principal fator de indução de morte, substituindo a heroína.

Esta, por seu turno, esbateu-se no papel central que desempenhava, sendo os seus usuários uma coorte envelhecida.

4. Internamente, o Relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) conhecido, referente a 2021 (elaborado em novembro de 2022) e reportando-se ao ciclo 2017/20 dá conta do agravamento do consumo de canábis na população geral (mais nas mulheres e nos 25-44 anos), do acréscimo do consumo de outras drogas, da diminuição do risco percebido entre os mais jovens sobre o consumo de drogas, e de uma subida das overdoses.

Em suma, se bem que o panorama nacional do consumo de drogas, comparado com os países da EU não seja desfavorável, a preocupação pelo aumento do consumo de drogas justifica-se. E uma coisa é a visão que resulta dos inquéritos e estatísticas, outra a perceção geral na comunidade e tem a ver com o modo como a droga atinge o círculo dos familiares e amigos, e com a própria imagem que advém dos OCS.

Significativo é que o diretor-geral do SICAD, perante o clamor vindo da cidade do Porto, designadamente com a dispersão de toxicodependentes após a destruição do bairro do Aleixo, já admita reintroduzir o tema da criminalização do consumo de droga no espaço público.

 

Reflexão e revisão

da política global atual

5. Decorridos mais de 23 anos sobre as últimas alterações político-legislativas de luta contra a droga, é tempo de fazer uma pausa para reflexão objetiva de elementos da política de 2000, atendendo à evolução científica, às experiências práticas, aos resultados obtidos. Formulam-se algumas sugestões.

5.1. Diferentemente da composição da Comissão que em 1998 preparou a Estratégia Nacional de Combate à Droga, de predominância essencialmente médica, numa futura Comissão haverá que permitir uma intervenção que seja alargada, para além dos médicos, a representantes das magistraturas, químicos, economistas, polícias, associações da sociedade civil, pessoas ligadas ao consumo, antes de o Governo submeter a sua proposta à AR.

 

5.2. Nesse âmbito, deverá essa Comissão munir-se de uma avaliação independente sobre a validade das políticas vigentes, sem preconceitos de qualquer espécie ou influência de figuras do establishment, e sem excluir as experiências mais controversas como as instalações para ‘consumo vigiado’ (vulgo, ‘salas de chuto’) ou o próprio interesse de manutenção das atuais Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT), de modo a aperfeiçoar o que funciona e a abandonar o duvidoso ou inútil, sendo certo que muitas das previsões posteriores a 2020 não tiveram sequência ou foram tardiamente acionadas.

 

5.3. Só depois deveriam ser repensadas as estruturas orgânicas de coordenação e execução, o seu lugar na área do Governo e ministérios envolvidos, dando-se mais um passo na estabilização daquilo que tem sido um rodopio de flutuações desde a sua criação pelos idos de 1976. À míngua de instrumentos de coordenação e falta de antecedentes das ARS no tratamento dos toxicodependentes era de prever a perda de operacionalidade com a reforma drástica de 2012, que criou o SICAD, ao que consta em vias de processo legislativo de alteração.

 

6. De há muito se constatou que a luta contra a droga (e outros comportamentos aditivos em geral) tem de assumir um caráter pluridisciplinar, pelo que não se compreende o que hoje sucede com a minimização do papel de instituições como os tribunais e o Ministério Público, às quais muitos países continuam a conferir, pelo seu caráter de ameaça formal e coerção, uma complementar relevância quer no afastamento da recidiva do consumo quer no incentivo ao tratamento, para além da repressão do tráfico. Sempre o impulso para associar à liberdade o contraponto da responsabilidade, sob pena da rarefação da vida social e familiar.

As leis antidroga são uma ‘manta de retalhos’ – e as instâncias legislativas têm obrigação de a cerzir, há vários anos –, tornando-se necessário estabelecer coerência entre princípios opostos radicados na legislação de 1993 e na de 2000 e subsequente.

 

O exemplo do tabaco

7. Vale a pena lembrar o que se tem passado com o consumo do tabaco: minimizaram-se os seus danos, difundiu-se uma publicidade desenfreada, constituíram-se empórios de produção, fabrico e comércio, para depois se iniciar, sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde, um movimento de direito internacional que levou as NUs à aprovação da Convenção Quadro para o controlo do tabaco de 2003. E agora vai-se proibindo o consumo nos transportes, nas repartições públicas, nos restaurantes e por aí fora, fazendo vingar os direitos dos não fumadores e tentando reduzir os danos na saúde dos que fumam. Numa proposta de lei pendente continuam a restringir-se os locais de consumo e de venda de tabaco simples ou aquecido. E o objetivo último é agora contribuir para uma geração livre de tabaco até 2040.

 

8. Sendo muitas das drogas a que se referem as três convenções incomparavelmente mais perigosas do que o tabaco, queremos repetir esta experiência ao permitir que a sociedade continue a ser inundada destas, que se vulgarize o seu consumo, que se passe para a produção e venda controladas, com empresas a atulharem-se de lucros, para depois nos estarrecermos com os malefícios da saúde e então impor metas para uma sociedade livre de drogas? Curiosamente, quando em Portugal alguém se atrevia a recordar que o objetivo das NUs é uma sociedade livre de drogas, quase desabava a zombaria das vanguardas.