BRIDGETOWN – Acordo tarde e um cometa vermelho em flor entra-me pela janela e quase me cega de tão intenso. As flores das acácias são rubras como em poucos lugares as vi assim. Fico sentado na cama, estremunhado, ainda cansado da noite mal dormida por causa dos mais de 80% de humidade que fez com que acordasse com os lençóis encharcados em suor. O céu por aqui cai-nos sobre a cabeça como se fosse um dos antigos cobertores de papa que tapavam as camas no tempo dos avós. É ainda cedo. Vai chover, mas mais logo. Uma chuva espessa e tropical com bagos tão grossos como uvas. Estaremos sentados na varanda à conversa um bocado pela noite dentro. Virá o noitibó com um desembrulhar de asas pousar no ramo do frangipani. Haverá a luz distante dos relâmpagos e o som quase inaudível do trovão distante. E uma frescura amigável tomará conta da noite. Em Barbados não vale a pena ter pressa. É tudo demasiado pequeno para que andemos a correr de um lado para o outro – 432 quilómetros quadrados. Um país pouco maior do que a Madeira, por exemplo. Mas que tem gente. Muita gente: 287 mil habitantes, mais de seiscentas pessoas por km2. Muita gente para a média desta zona do globo, entenda-se. Um universo de ilhas que começa lá no norte, nas Bermudas (ficam praticamente no mesmo paralelo do Funchal) e que se multiplicam até esta que fica no ponto mais a sul daquilo que se costuma chamar o Caribe, ou as Caraíbas, apenas 13º acima da linha do Equador. Portugal chegou a reclamar a ilha como parte do Império entre 1532 e 1536 mas, basicamente, esteve-se nas tintas para o território, deixando-o por conta dos ingleses.
Barbados é plural só por acaso. Não se deve escrever nos Barbados mas sim em Barbados. Porque, ao contrário de muitas das ilhas suas vizinhas, é solitária. E plana. O mar é, no Pantone, da cor, 15-4825 TCX – Azul-Curaçau. E Curaçau fica ainda mais perto da costa, junto à Venezuela, com Aruba ao lado. Há mais ilhas do que estrelas embora o céu tenha sido limpo pela esfregona da tempestade. A tempestade também tem nome oficial: Tempestade Tropical Bret. Passou a rasar, caiu em cima de Santa Lúcia, Dominica, Antígua e Barbuda. Barbuda/Barbados: o termo é tão português como castelhano. Agora saber ao certo a que se aplicava já mete uma certa divisão de teorias. Há uns que dizem que o termo se aplicava aos índios que habitavam as ilhas – o que não é muito crível já que eram etnias de cabelos longos mas geralmente de cara glauca – ou talvez se referisse as árvores banyan que abundam nas ilhas e no continente próximo cujas folhas caem como lianas até ao chão onde voltam a brotar como raízes de novas árvores. Há um ambiente pacífico no dia a dia tal como costuma acontecer nos trópicos. Ficamos com a sensação que surge sempre em sítios como este – não são os lugares ideais para nos matarmos de trabalho. Tudo convida à preguiça.
Gostas de viver aqui? Gosto! As condições que me deram são óptimas, tenho carro próprio, telemóvel, computador, nada me tem faltado desde que cheguei. A alimentação é boa. O clima é óptimo. O lugar é suficientemente pequeno para podermos trabalhar a sério e, ao mesmo tempo, gozar momentos de lazer…
Orlando Costa tem 46 anos. Pode ser que vos tenha passado ao lado, mas é o selecionador de Barbados. E não há assim tantos selecionadores portugueses em redor do mundo quanto isso. Uma noite, num jantar de família, o telefone tocou. Era Nelo Vingada, o homem a quem ele diz dever tudo na sua carreira até hoje. A proposta era concreta: bastava sim ou não. Foi sim. Uma semana mais tarde aterrava em Bridgetown para assinar contrato por um ano. Se me perguntares se preferia estar a trabalhar no meu país, junto da minha família, diria que sim…
Pois era isso mesmo que ia perguntar. Se trabalhar como treinador da I Liga é um objetivo teu? É a minha ambição. Trabalhar num clube que me dê condições para mostrar aos portugueses a valia do meu trabalho, estando dia a dia com a minha mulher, o meu filho e as minhas duas filhas…
Mas… Mas a realidade do futebol português é, neste momento, muito complicada. É com orgulho que digo que nunca pertenci a lóbis, que nunca me deixei envolver pela teia de interesses que existe em Portugal em redor do futebol. Há que dizer isto de forma frontal. Estamos demasiado presos a tudo isso, o que dificulta a chegada de um treinador como eu a um clube com ambições da II Liga ou a um clube da I Liga.
Os pássaros entram pela sala com um à vontade admirável. Aproveitam os espaços que ficam entre as tabuinhas das janelas e vêm em busca de migalhas. Em baixo estendem-se as folhas das árvores que preenchem este jardim luxuriante que fica em redor de duas vivendas brancas. Uma delas é habitada por Orlando e por Ricardo Fernandes, seu adjunto, que teve a suprema amabilidade de me ceder o seu quarto por umas noites. Não sabia ao certo quem vinha encontrar, mas o discípulo de velhos amigos pelos quais tenho grande carinho, como são os casos de Nelo Vingada ou do professor Neca, já para não falar dessa figura inimitável que é o Tó-Zé Francisco, já era uma garantia. Senti-me em casa. Ou melhor: fizeram tudo para que me sentisse em casa. Por isso aqui estou, de frente para o vermelho-gritante das flores das acácias, ao som dos pássaros de todas as espécies, a escrever a história de uma viagem que ainda não tinha feito antes.
O trota-mundos
Orlando tem sido um trota-mundos: começou como adjunto de Nelo Vingada no Moreirense na época de 2001. Passou a adjunto de Paulo Sérgio na Académica. Voltou à esfera de trabalho de Nelo Vingada no Vitória de Guimarães e foi com ele para a Coreia do Sul trabalhar no FC Seul. Depois foi para a China e para o Dalian Shide com o professor Neca. Ganhou carta de alforria na Oliveirense, no Tirsense e no Merelinense, onde foi mais do que simples treinador e sim coordenador de todo o futebol. Teve passagens, também como adjunto, no Persépolis, do Irão, no Al.Thadamon, do Koweit, e na Guiné-Bissau na última Taça de África. A Terra na palma da mão. E ainda assim, o sonho mantém-se. Claro que ter trabalhado em todos esses países me deu uma experiência e uma capacidade de adaptação enorme. Aprendi a ter sensibilidade em relação a diferentes culturas e formas de pensar, a ser flexível no meu trabalho por ser obrigado a adaptar-me a formas diversas de pensar e de trabalhar. Quando surgiu esta proposta para assumir o cargo de selecionador de Barbados, aconselhei-me com o professor Nelo Vingada que tem sido, para mim, um fonte de inspiração profissional desde o tempo em que trabalhava com o professor Carlos Queiroz. Ele disse-me para aceitar e estou contente por isso. A despeito de todas as dificuldades inerentes a um país que não é apaixonado por futebol, que prefere o críquete, e que só tem um campo onde se disputam todos os jogos da I e II Divisão, sinto que estou a cumprir com os meus propósitos. Agora não escondo que ambiciono trabalhar em Portugal, na I Liga, exatamente porque sei que estou aqui fora dos radares e quero que os portugueses conheçam e reconheçam o meu trabalho.
De repente o céu abre-se em catadupas. A chuva é tão cerrada que nem os mais pequenos dos insectos passa nos intervalos das gotas. Os pássaros recolhem-se à segurança do interior das aves e o céu emite três ou quatro flashes rápidos que dão um tom especial à policromia do lugar.
Ninguém parece saber ao certo quais foram os primeiros europeus a chegar a Barbados. Os historiadores parecem fazer apostas entre portugueses e espanhóis. A verdade é que a ilha manteve-se ignorada até que, a 14 de Maio de 1625, o capitão John Powell da marinha britânica aportou num lugar a que deu o nome de Jamestown, em honra do rei Jaime I. Depois formou-se a colónia, governada por Sir William Courten, que também foi governador de outras ilhas das redondezas. Os britânicos instalavam-se. Sempre foram bons a instalar-se. Entre 1640 e 1660, os ingleses acorreram a ocupar as Caraíbas em força. Muitos dos que firmaram aqui os pés eram gente sem eira nem beira e recebiam, por parte da coroa, um incentivo de 10 Libras e um pedaço de terreno entre dois e quatro hectares para poderem cultivar árvores de fruto, batata-doce, tabaco e, principalmente, cana-de-açúcar com a qual se fazia o tão apreciado rum. Nesse espaço desses vinte anos mais de 40 mil cidadãos britânicos vieram para ficar. Foram ficando. Os nomes indígenas são bem a prova dessa ocupação em massa.
De todo o Caribe, Barbados é um dos países mais prósperos. Independente desde o dia 30 de Novembro de 1966, manteve-se ligado à Commonwealth e tinha como chefe de poder a rainha Isabel II. No dia 30 de Novembro de 2021 declarou-se a República. Passou a ter uma presidente: Sandra Mason. O primeiro-ministro também é uma mulher: Mia Motley. Ninguém pode acusá-los de machismo. A ilha está dividida em onze regiões a que eles chamam paróquias (parish). Quase todas com nomes de santos: Christ Church; Saint Andrew; Saint George; Saint James; Saint John; Saint Joseph; Saint Lucy; Saint Michael; Saint Peter; Saint Philip e Saint Thomas. Ninguém pode acusá-los de falta de fé. Em termos de Produto Nacional Bruto estamos a falar do 52º país mais rico do mundo. A produção da cana-de-açúcar e o turismo são os principais responsáveis por esses números. E, no entanto há pobreza. A muitos falta um rendimento fixo para que possam levar uma vida desafogada. Diz o Orlando: «Outro dia, num treino, perguntei ao miúdo que estava sentado a meu lado no banco, que tinha para aí 17 ou 18 anos – olha lá, que comeste ao pequeno-almoço? E ele espondeu – água. Fiquei aparvalhado: só água? Só água. E, no entanto veio lá do lugar dele, teve de apanhar três carrinhas, que aqui servem de autocarros, para chegar a tempo, e treinou durante uma hora e tal. É difícil exigir mais a estes miúdos».
O selecionador de Barbados é mais do que um simples selecionador. É também responsável por um projeto novo que passa por uma academia onde se treinam quase todos os dias rapazinhos que não têm clube. O problema é que se num dia aprecem 13 ou 14, no dia seguinte aparecem 7 ou 8. Nunca é possível esquematizar os treinos. Recorre-se ao improviso. O objetivo da Academia era precisamente o de poder ajudar o desenvolvimento de jogadores mais jovens, sem clube, que não têm treinos frequentes, permitindo-lhes evoluir técnica e taticamente para poderem, mais cedo ou mais tarde, ou serem contratados por um clube ou serem chamados à seleção em jogos experimentais. Mas por muita vontade que nós tenhamos em manter a Academia a funcionar em pleno, o facto é que as condições não são suficientes para que recolhamos fruto do nosso trabalho. Até porque com este tipo de treinos quase em cima do joelho não conseguimos inculcar entusiasmo nos miúdos. Ainda por cima quando todos eles nem sequer têm o futebol como uma prioridade.
Pedregulhos no Paraíso
Jantamos numa esplanada sobre o mar. As ondas, irritadas, tentam subir as rochas e as paredes mas o mais que conseguem é respigar pedacinhos de espuma. O vento sopra com força mas é morno. As raparigas que nos servem são tão simpáticas como lentas. São de requebros. É assim o ritmo das seivas seja em que lugar for do mundo. O Paraíso também tem pedregulhos pelos caminhos. É difícil interiorizar a um povo habituado a viver à sombra dos coqueiros a ideia de urgência, de agressividade. A atitude dos jogadores de Barbados e de outros países vizinhos perante o futebol é a de que há coisas bem mais importantes. E que valem esforços maiores. A grande maioria dos jogadores de todos os clubes, ou mesmo a totalidade, é amadora. A I Divisão tem 12 clubes, sendo que o Wales é o que paga mais e, por isso, tem melhores jogadores. Isso cria logo um problema porque os jogadores do Wales têm uma espécie de complexo de superioridade perante os colegas. Um dos primeiros problemas que tive de enfrentar. Logo no primeiro treino houve dois que chegaram com 20 minutos de atraso. E nem se deram ao trabalho de pedirem desculpa a mim ou aos colegas. Mãos nos bolsos, a mascar pastilha, pinta de vedetas. Cortei o mal pela raiz. Chamei-os à parte, disse-lhes que o comportamento deles era inadmissível e que ia riscá-los das convocatórias. Outro dos problemas é o de terem todos outras profissões. E é com elas que alimentam as famílias, não é com o futebol. Deparei-me com um universo de desinteresse coletivo em redor da seleção. E com grupinhos que percebi que já vinham de trás. Pensei logo que ou cortava a direito ou a vítima iria ser eu.
O antigo selecionador de Barbados era Russel Latapy, que passou pela Académica, FC Porto e Boavista como jogador (e bom!), antes de ir para a Escócia e para Hibernian e Rangers. Esteve três anos à frente da equipa do tridente sem grandes resultados. O tridente da bandeira de Barbados, posto sobre a faixa amarela (que representa o dourado da areia das praias) entalada entre duas faixas azuis (sugestão de mar), foi uma invenção de um mamífero chamado Grantley W. Prescod após a independência do território. Fez-se um concurso aberto ao qual concorreram mais de mil designers. O Tridente de Poseidon, deus dos mares, saiu francamente vencedor. Mas como fazer com que os jogadores tenham por aquela bandeira e por aquele símbolo um sentimento quase religioso, algo fundamental para o sucesso de uma seleção nacional? É a pergunta que faço,
Não sinto que haja por aqui um sentimento de orgulho pátrio muito forte, ou estou enganado? Não. Tens razão. E ainda por cima o futebol nem sequer é o desporto mais querido dos habitantes da ilha que preferem o críquete.
A pouco e pouco a esplanada vai recebendo turistas inconfundivelmente ingleses de pele vermelha da cor do fiambre, um deles entroncado e gordo com uma tatuagem quase debaixo do sovaco esquerdo com um bulldog humanóide que diz por baixo: «I’m british with proud!»
Pois era mesmo sobre isso que falávamos. Vou dar-te o exemplo de um dos nossos últimos jogos, em Antígua, no final de março. Estamos a falar de uma seleção que é superior à nossa, embora jogue connosco no Grupo B da Liga das Nações. Pela meia-hora fazem um golo, de canto direto. Senti a equipa amorfa, sem reação. Um dos meus jogadores tido como um dos melhores de Barbados recebe uma bola à saída da nossa grande-área e tenta passar por três adversários. Só não levámos o segundo golo porque o central nos salvou. Estava fulo. Quando me dirigi para as cabinas ouvi um sururu tremendo. Gritos e mais gritos entre os meus jogadores. Um deles chamou-me: «Coach, venha cá!» Fui. Perguntei o que se passava. Estavam a culpar-se uns aos outros. O tal artista que tentara passar por três ao mesmo tempo reclamava: «Não estamos a jogar nada! Assim não ganhamos a ninguém. Não atacamos de jeito!» Foi preciso levantar a voz. Parar com aquilo de vez. Disse-lhes que o que tinha visto era uma vergonha, que eles tinham a obrigação de jogar pelo país deles, sentir orgulho nisso, darem tudo o que tivessem por uma vitória que haveria de ser nossa. Insisti que era um jogo que tínhamos obrigação de ganhar, mas que só conseguiríamos isso se jogássemos como um grupo, como uma família, deixando de lado as jogadas individuais que não nos levavam a lado algum. Senti que era preciso entrar em rutura para salvar o grupo. Voltámos para o segundo tempo e dez minutos depois já tinha tirado o tal artista e mais dois que estavam a facilitar. Os que entraram, entraram com ganas. A equipa transformou-se. Fomos para cima do adversário, o Thierry Gale fez um golo espetacular logo aos 60 minutos. Houve uma transformação completa na atitude dos jogadores e percebi que tínhamos tudo para chegar à vitória. A três minutos do fim, o Tajo James fez o 2-1. Nunca vi tanto entusiasmo no grupo. No fim do jogo a cabina era um caos com todos a cantarem e a dançarem. Percebi que tinha ganho a confiança dos jogadores. Percebi que estava no caminho certo para nos levar a criar um conjunto unido e solidário. Pouco me importam as azias das pseudo-vedetas. Era a altura certa para que percebessem com quem conto para levar Barbados o mais longe possível e para que os que só pensam em si próprios serem afastados. Foi uma vitória importantíssima.
E onde pode chegar a tua seleção, afinal? O meu objetivo é fazer melhor do que na última edição da Liga das Nações em que ficámos em últimos no grupo. Fizemos três pontos, já igualámos o que foi feito anteriormente. Agora, se puder pelo menos lutar pelo primeiro posto e pela subida ao Grupo A, sei que é muito complicado mas vamos fazer tudo por isso. Seria uma evolução espetacular e um momento único para o futebol dos Barbados. Quero ter os pés assentes no chão mas também quero poder sonhar com algo que nunca aconteceu até aqui. Afinal foi por isso que aceitei este desafio…
O perfeccionista!
É preciso atrevimento para apanhar um aviãozinho das Carabean Airlines de Georgetown na Guiana para Bridgetown nos Barbados e bater à porta de alguém que até agora não conhecera pessoalmente – demos desconto aos elogios feitos por amigos comuns. E é preciso uma grande dose de hospitalidade para que, ultrapassada a porta de entrada, já ter um quarto à minha espera mesmo que para isso o Ricardo, que trabalha como adjunto do Orlando, tivesse sido despejado para meu conforto. Saravá! Usei e abusei, mas encontrei uma dupla camarada como poucos, gente de boa índole e que põe de lado o egoísmo e que se lançou à aventura de vir viver para um país que oferece a um treinador de futebol muitos escolhos. A ambição não pode, por isso, ser muito grande. Mas isso não impede Orlando Costa de aproveitar todos os momentos para se ir aperfeiçoando. Antes de começarmos a conversar pôs na minha frente um dossier completíssimo sobre os seus métodos de treino, sobre a forma como pretende atrair os jovens para a prática do jogo, sobre o estudo que tem vindo a fazer e a arquivar em relação a todos os jogadores que tem sido chamados à seleção. Um documento minucioso e precioso. Pelo menos sinto que deixo aqui um rumo de trabalho mesmo no caso de ir embora no final do contrato, em novembro. Já me disseram que corria o risco de, quando me for embora, aparecer todo este projeto assinado por outra pessoa qualquer. Enfim… Não me preocupo muito com isso. Estou aqui a fazer o meu trabalho e faço-o com o maior entusiasmo e com toda a competência que possa ter. Desejo muito que sirva para mudar para melhor o futebol do país e não preciso de recolher os louros disso.
Qual o peso dos jogadores que estão em equipas estrangeiras na tua seleção? Grande. Mas aí está outro dos problemas com que viemos deparar: fraca informação sobre os que aqui chamam de outsiders. Fui eu que tive de completar as fichas dos jogadores – de muitos, a federação tinha só o nome, a idade e a altura, às vezes nem isso. Tive de procurar tudo o resto – se eram esquerdinos, se eram titulares nos seus clubes, em que posição jogavam nos clubes… Quando aqui chegámos tínhamos sob observação, indicados pela federação, dez jogadores interessantes a jogar fora de Barbados. Fiz uma pesquisa profunda e descobri mais 40…
Já percebi que os ingleses têm esta zona do mundo bem controlada. Muitos dos jogadores das Caraíbas jogam em clubes ingleses, mesmo que nas divisões inferiores. Sim. E alguns deles podem acrescentar à equipa não apenas experiência de um futebol mais competitivo e trazer outra intensidade para o nosso jogo…
Trouxeste uma ideia tática para implantares na equipa ou vieste mais disposto a moldar essa ideia perante os jogadores que encontraste? Sou um adepto do 4.2.3.1 e é assim que gosto que as minhas equipas joguem. Uma variante do 4.3.3 que aposte na pressão ofensiva e na conquista da bola o mais vezes que for possível no meio campo do adversário.
Sentes progressos? Sinto. E foram rápidos. E não sou só eu a sentir esses progressos. Dou-te um exemplo: no dia 23 de março jogámos aqui com Cuba para a Liga das Nações e Cuba é das equipas mais fortes da região com muitos jogadores a atuarem nos Estados Unidos, na MLS. Aos 3 minutos já estávamos a perder. No entanto tivemos a capacidade para jogar com bola, cumprir o plano estabelecido, de tal forma que dois dos melhores jogadores cubanos vieram ter comigo no final do jogo para me darem os parabéns: «Hey Coach, a tua equipa sabe jogar. Nunca vimos Barbados jogar assim, era só pontapé para a frente». Quando eles ficaram com um a menos por causa de uma expulsão fizemos um pressing tremendo. Caímos em cima deles por completo. Só não conseguimos marcar. Outro dos problemas que temos. O da finalização. Faltam-nos jogadores com determinadas características. Temos de continuar a procurá-los…
Como treinador qual é o teu estilo? No banco?
Isso. Olha, sou bem mais calmo quando estamos a perder. Tento não passar precipitação nem nervosismo aos jogadores, não grito muito com eles se sentir que estão a dar o seu máximo. Quando estamos a ganhar sou mais mexido. Gesticulo mais, procuro que eles não deixem de atacar, que mantenham a posse de bola. Perguntei-lhes outro dia: «Preferem ter a bola e trocá-la uns com os outros, fazendo aquilo que chamamos de descanso ativo, ou andar como doidos à procura dela?» Nunca estiveram habituados a jogar dessa forma. Era futebol direto e nada mais. Bola no defesa, chutão para a frente. Há que dizer que fiquei surpreendido com a facilidade com que a grande maioria deles se adaptou às nossas ideias. De tal ordem que fizemos três jogos de preparação seguidos com Granada, uma equipa mais forte do que a nossa, e conquistámos três empates, todos eles jogando com posse de bola e transição para o ataque bem delineada. E nesses jogos só foram chamados jogadores dos clubes de Barbados.
O passarito escuro, de peito mais claro, provavelmente um king-bird avançou pela varanda e poisou na mesa da sala de refeições como para nos lembrar de que era hora do almoço. O Orlando e o Ricardo têm o seu esquema montado, e só o furam volta e meia para darem um salto a uma esplanada de praia. Há uma senhora que conduz uma carrinha que pára nas traseiras de uma bomba de gasolina, abre a porta de trás e põe à disposição dos clientes um tachos de comida acabada de confecionar. Arroz, macarrão, puré de batata, um peixe frito muito estreito que quase não tem espinhas, frango assado, porco ou carneiro estufado… As Antilhas nunca foram um daqueles lugares que encantam pela gastronomia, bem pelo contrário. Mas com mais ou menos sabor levamos o almoço e o jantar para casa já que, pelo caminho houve ordens para se fechar tudo o que é negócio por causa da ameaça da maldita tempestade que ameaça que vem e não vem. Ou talvez tenha mesmo vindo porque acordei de noite com o vento a soprar pelo meio das casuarinas, as bátegas de chuva na janela e com o estranho silêncio das rãs.
O estudioso
Comemos devagar, a televisão transmite videoclipes de música bem típica das Caraíbas, com muita Rihanna pelo meio, não seja ela um produto de exportação de Barbados, nascida há 35 anos em Saint-Michael, Bridgetown, e um orgulho nacional, tal como os jogadores de Orlando Costa e Ricardo Fernandes gostariam de o ser. Preciso de partir muita pedra para sentir que o meu trabalho aqui recompensou. E os jogadores também têm de evoluir.
Como é o campeonato? Muito fraco? Disputam-se dois jogos à sexta-feira e mais dois ao sábado. Todos no mesmo campo. Eu e o Ricardo vamos sempre ver os jogos, sobretudo para que os jogadores sintam que lhes estamos a dar atenção e interessados no que fazem nos clubes. Muitos deles estavam habituados que as convocatórias fossem sempre para os mesmos, o que criou um certo mau ambiente. Quando afastei dois dos mais preponderantes percebi que ia abrir uma guerra mas que era uma guerra inevitável. Fui criticado pela imprensa. Um deles teve o atrevimento de me ligar para o telemóvel a perguntar porque é que não estava convocado. É preciso ter lata. Nem lhe falei. Desliguei-lhe o telefone na cara. Mas depois também sei que vai arranjar um grupo de jogadores e de adeptos que não vão parar de me morder os calcanhares. Quando vim para cá e assinei contrato, o presidente deu-me plenos poderes sobre a seleção de Barbados. Eles vão ter de aprender que é como eu digo e não como alguns querem. Rompi com um passado de desleixo e de desinteresse. Só quero comigo gente que seja capaz de dar tudo pelo seu país e pela sua seleção.
Orlando anda sempre acompanhado por livros e e-books: «Gosto de estar sempre atualizado e de estudar aqueles que são os mestres como o Guardiola, o Klopp, que me diz muito, o Mourinho, etc. Estudo os manuais que são publicados sobre o desenvolvimento em treino dos seus métodos, tiro deles ideias para os meus treinos, pego numa coisa aqui e ali e desenvolvo segundo a minha filosofia. Sinto necessidade de aprender sempre. Sem nunca esquecer uma frase muito importante para mim dita pelo professor Manuel Sérgio: “Por dentro de cada jogador está um homem”. Por isso gosto de conversar com eles individualmente, perceber se eles entendem os objetivos de cada exercício, se percebem o que lhes é pedido e se vão ser capazes de o fazer dentro do campo».
Nos dias que passaram num instante, com as mornas noites à varanda com o vermelho das acácias e o branco dos frangipanis a servir-nos de tapete, as conversas versaram muita coisa. Orlando e Ricardo vivem numa casa agradável de jardim basto onde só se escutam os sons da natureza. À noite há um coaxar que serve de música de fundo. Sobra sempre para eles a nostalgia de casa, as saudades das famílias (que estão para chegar de férias), o esforço para se adaptarem não apenas a uma forma diferente de viver mas também a uma forma diferente de pensar. Às vezes olho um bocadinho para trás e penso: «Que seja o que tiver de ser». Não sou de grandes planos para o futuro. As coisas têm surgido na minha vida com naturalidade, de tal forma que aos 46 anos já tive a oportunidade de trabalhar em sítios tão diversos do mundo, e não esqueço que devo isso a duas pessoas como são o professor Nelo Vingada e o professor Neca. Não crio expectativas. Espero que as oportunidades vão surgindo para que possa fazer as minhas escolhas.
Ainda assim Barbados é cair um bocado no esquecimento, não tens medo disso? Nenhum. Aqui dão-me a liberdade de ser mais do que um simples selecionador. A mesma situação que encontrei no Merelinense e na Guiné-Bissau. Tomar decisões que se podem refletir a longo prazo, apesar de todos os obstáculos que sei que são inevitáveis. Vivi isso na Guiné-Bissau, toda a gente queria que ficássemos depois da Taça de África, mas a minha decisão foi sair exatamente por isso. Vim para cá com gosto e com toda a vontade!
Mas à espera de um convite para a I Liga… Esse é o meu maior desejo! Como disse há pouco, chegou a altura de ter vontade que as pessoas em Portugal conheçam a minha forma de trabalhar e possam tirar conclusões. Sei que é difícil para todos os treinadores que não estão colados a determinadas pessoas ou situações. Por outro lado, prevalece a minha costela aventureira. Tenho um lema que transmito sempre aos meus jogadores: «Atitude/Organização/Paixão!» Uso-o para mim mesmo.
Às 16h00, Orlando e Ricardo vão para a Academia sem saberem ao certo quantos jogadores vão aparecer nesse dia para treinar. Muitas vezes falta um guarda-redes coisa que, convenhamos, não dá jeito nenhum seja a que treinador for. Uma vez por semana faz um treino com os selecionados locais que insiste em ir observando e polindo para os encaminhar para a equipa principal. É a maneira que arranjou de ir mantendo vivo o espírito nacional. Brdgetown já se chamou Saint Michael. Muitos tratam-na simplesmente por The City. Afinal não há outras que o sejam a sério. Há provas de que foi habitada antes da chegada dos europeus por indígenas que levavam o nome de tainos. As relações deram-se inicialmente com os kalinagos, de Santa Lúcia, a ilha que fica, como diz o povo, mais à mão. Problema para os tainos que viram o seu espaço ser invadido. Depois veio um cavalheiro inglês rico que, depois de o território ter sido anexado à Coroa, resolveu comprar nada menos de dez mil acres de terreno para plantar tabaco, trazendo consigo 64 colonos que tinham por obrigação manter os escravos na ordem. Os seus habitantes são conhecidos por bajans (eles dizem beijuns), e embora o termo esteja mais ligado à diáspora (há uma forte imigração, seja para Inglaterra seja para outras ilhas do Caribe – só por curiosidade mais de 40 mil foram auxiliar nas obras do Canal do Panamá entre 1904 e 1914), serve para identificar a mistura que desde o século XVII começou a ser promovida entre os africanos trazidos como escravos para as plantações de cana-de-açúcar, algodão e de tabaco e os locais. E não, não há por cá, grandes lendas de piratas como acontece um pouco por todas as Antilhas. Mantiveram-se à distância. Para compensar, Barbados foi a ilha onde nasceu um pirata muito especial, Stede Bonnet, filho de um juiz de paz que resolveu comprar um cúter, em 1729, ao qual deu o nome de Revenge, partindo com 70 homens à caça de navios que trouxessem no bojo algo de valioso. Acabou por ser capturado na costa da Virgínia, e enforcado em Charles Town. Deixou saudades. Era tão elegante com as suas vítimas que ganhou o título de Gentleman Pirate. Serviu-lhe de pouco, é verdade, mas também demonstra o espírito pacífico dos bajans. O Orlando e o Ricardo que o digam. Encontrei-os felizes, deixei-os felizes na sua aventura caribenha. Mesmo que tanto calor e tanta humidade façam qualquer um pensar duas vezes antes de andar 90 minutos a correr por causa de uma bola… Ninguém pode afirmar que Orlando Costa não foi avisado do que iria encontrar. Nelo Vingada disse-lhe mesmo – «Prepara-te porque vais perder muito mais vezes do que ganhar». Uma profecia que até agora o selecionador de Barbados e o seu adjunto tentam negar. Uma derrota com Cuba, três empates com Granada, uma vitória sobre Antígua e Barbuda jogando fora. Soma três pontos na qualificação do seu grupo no Grupo B da Liga das Nações da CONCACAF. Os mesmos que Barbados fez em toda a prova anterior. Basta-lhe mais um empate para fazer melhor. Mas eu vi nos olhos do Orlando aquele brilhozinho de quem acredita – e acreditar é um verbo que pode conjugar-se até ao impossível. Por isso, Frank Collymore, o maior poeta de Barbados escreveu um dia: «This the lonely outpost of an alien new world/This the land, our island land!».