Se apanharmos a estrada que sai do largo da Igreja da Mãe de Deus, em Saligão, e caminhamos para oeste, atravessamos a taluka de Dongorpur, onde fica o maior templo hindu de Goa, o Shri Santadurga, e mais coqueiro menos coqueiro, mais cajueiro menos cajueiro, estamos em Calangute ou Baga, as praias onde ainda sobram alguns hippies dos anos-70, já muito escafiados mas sempre prontos a pegarem num alicate e num fio de arame e moldarem uma bicicleta ou um elefante para venderem aos turistas.
O hindu não tem til. E o concani, que é a língua de Goa, também não. Um problema para quem lidou, através do português com tantos ditongos. Saligão às vezes perde o i e fica só Salgão. Salgão perde o til a toda a hora e fica Salgao, tal como Margão fica Magdaon. A terra serviu para dar o nome a uma das famílias mais poderosas e mais antigas do território. E o expoente familiar máximo foi Vasudev Mahadeva Salgaocar, nascido em 1916 e falecido em 1984, um homem de negócios à antiga que fundou e foi presidente da V. M. Salgaocar Group of Companies que se dedicou à exploração, sobretudo, de minas de ferro e de carvão.
Vasudev gostava de futebol e decidiu que a sua empresa iria ter um clube de futebol tal como acontecia com a Companhia União Fabril, no Barreiro, junto a Lisboa, capital do Império. Escolheu Vasco da Gama para sede. Vasco da Gama é uma espécie de Cascais de Panjim. Está instalada no sul do estuário do Zuari, na província (ou taluka) de Mormugão, o grande porto da velha colónia. Ninguém em Goa diz Vasco da Gama. Dizem Vasco de Gama. Mas também ninguém diz «Vou ali a Vasco de Gama». Simplificam: «Vou ali a Vasco».
Há duas maneiras de encarar a passagem da Índia Portuguesa para as mãos da União Indiana. Os portugueses chamaram-lhe Invasão. Os indianos chamam-lhe Libertação. Não há meio termo. O Clube Desportivo Salgaocar, mais tarde renomeado Salgaocar Futebol Clube nasceu antes da Invasão ou da Libertação, escolham de que lado é que querem ficar, já não dou um tostão furado para esse peditório, com o nome de Vimson Club (contracção de V. M. Salgaocar & Sons).
Tinha como objectivo apostar na juventude e construir uma equipa de rapazes com ganas de ganharem taças e títulos. Tendo surgido à sombra do clássico Vasco da Gama, o mais prestigiado clube goês, conseguiu cair com rapidez no goto dos adeptos e, em 1962, já depois da Libertação ou da Invasão, foi convidado para ir até Nova Delhi participar num torneio a nível nacional, a Durand Cup, a competição mais antiga de toda a Ásia e a quinta competição mais antiga do mundo. Oh, sim! Era de estalo!, como diria o Alencar do divino Eça.
Jawaharlal Nehru, o pandita, primeiro-ministro indiano, fez questão de receber os jogadores do Salgaocar em sua própria casa. E, vamos e venhamos, o convite não foi inocente. Na sua cabeça labiríntica, Nehru sabia que estava a cravar umas bandarilhas no lombo de todos aqueles que estavam ligados ao Vasco da Gama, clube preferido da comunidade portuguesa.
Tornando-se igualmente um membro da I-League, o topo do futebol indiano, competição que recebe os campeões regionais que se batem pelo título de campeão nacional, o Salgaocar passou a ser um forte representante do futebol goês. E, em casa, dava cartas: 21 vezes campeão de Goa, 4 Federations Cup (corresponde assim por alto à Taça da Índia já que se disputa por eliminatórias), 3 Durand Cups, 3 Rovers Cups (uma taça que põe em confronto clubes da Índia mais ocidental), uma National Football League (1998-99) e uma das suas sucessoras, a I-League (2010-11), enfunando o peito de orgulho por ser o único goês campeão a nível nacional.
Curiosa esta roda de alcatruzes da nora que nos faz estar vivos num dia e mortos no dia seguinte. Logo após ter conquistado a I-League, atingindo o seu nirvana desportivo, o Salgaocar começou a somar maus resultados a resultados ainda piores. Ainda foi a tempo de bater o Pune FC na final da Durand Cup (1-0) de 2014 mas a sua chama perdera-se entretanto com a mesma facilidade com que Salgão perdera o til.
No passado dia 28 de Junho, uma nuvem de tristeza abateu-se sobre os seus dirigentes, jogadores e adeptos. Pela primeira vez não foram capazes de cumprir os requisitos necessários para se inscreveram na I-League. Não há grandes nomes no futebol indiano. Se os houve, Menino Figueiredo, Juje Siddi, Franky Barreto,Robert Fernandes, Brahmanand Shankwalkar e Bruno Coutinho foram alguns deles. Jogando com a camisola verde do Sagaocar e chegando à selecção nacional da Índia.
Quando o sol se põe nas praias de Goa, as águias pesqueiras vêm sobrevoar a rebentação das ondas assustando as gaivotas. Às vezes sobra tempo para olhar para o horizonte e perceber que amanhã também perdeu o til.
afonso.melo@newsplex.pt