Estado da nação política

A mentira é uma nova especiaria comportamental, bem aceite (ou consentida) e a ‘arte de bem mentir’ é transaccionada por consultores comunicacionais especializados.

por António Bagão Félix
Economista

 

Há alguns anos, escrevi sobre o que, em tempo de balanço, se convencionou chamar Estado da Nação. Focado sobretudo na ‘Nação política’. Então, ainda com alguma ilusória esperança de que o estado da política pudesse melhorar.

Estava enganado. É certo que continua a haver bons políticos, boas políticas, boas práticas, bons exemplos que, todavia, tendem a ser a excepção. A política vem sendo cada vez mais capturada pelo primado da conveniência, do tacticismo, da degradação do exercício do poder-dever, da obsessão do actualismo, da catadupa de notícias devoradas umas pelas outras, das sondagens por tudo e por nada e dos like de toda a sorte.

O escrutínio da acção política perde-se na penumbra do tempo e na fulminante erosão da memória colectiva. O espectáculo do anúncio tornou-se central. Já não é preciso fazer, basta anunciar, em doses repetidas se necessário for. Não se age, antes se reage, em agendas mais marcadas pelo oportunismo do que pela convicção. Abraçam-se minudências para se procrastinarem os grandes desafios. Misturam-se a insignificância com a gravidade, a festarola com a solenidade, o detalhe patético com a essência das coisas. As ideias tornaram-se moldáveis, volúveis, permutáveis, negociáveis em forma de plasticina intelectual. Mais do que discutir ideias, formulam-se expedientes.

Tal como pelo mundo fora, há fartura de políticos dos direitos, escasseiam políticos dos deveres e estadista é uma espécie em vias de extinção.

Têm sucesso os mais espertos, às vezes os mais falsos, aqueles para quem os fins sempre justificam os meios. Uma forma quase darwinista de preservação.

Os quase ilimitados meios de comunicação tornaram o jogo político numa corrida sem tréguas, mas também sem a exigência de se pensar para além do dia seguinte. O que hoje é considerado fundamental, amanhã pode passar a secundário e vice-versa. O que ontem foi uma promessa, amanhã poderá ser uma omissão. Não é por acaso que andamos há 50 anos a gastar dinheiro com estudos sobre um aeroporto ou sobre a bitola ferroviária, dois exemplos tristemente caricatos da incapacidade de decisão. A compulsão de se discordar ou concordar é quase sempre apenas guiada por se ser oposição ou se ser poder.

A ideia de política com ética vem-se rarefazendo, porque se para a política muitas vezes se diz que basta parecer (e aparecer), para a ética não basta a markética de parecer, é mesmo preciso ser. A escassez da ética da convicção e a diluição da ética da responsabilidade potenciam abordagens egoísticas, teleologicamente desprezíveis, e favorecem ambientes corruptíveis e dissolventes. Hoje diante de conflitos de interesses reais ou potenciais, moldam-se as leis e as regras para, não raro, legalizar o que nem sempre é legítimo. A fronteira entre ser-se popular e ser-se populista é agora ténue, mesmo para quem se diz contra todas as formas de populismo e de desintermediação política.

É penoso assistir à primazia do passa-culpas. Cada vez mais se quer fazer restringir a responsabilidade política à culpa pessoal, como artifício para ultrapassar momentos críticos e para ladear a prestação de contas perante os representados. Aliás, a culpa é sempre de quem está abaixo, o proveito é sempre de quem está acima. É penoso assistir ao ‘não sabia’, ao ‘não tive conhecimento’, ao ‘foi sempre assim’, ao ‘antes, era pior’.

A memória, antes preservada, é agora a excepção no paraíso da amnésia. O formalismo é desprezado e substituído por mensagens em modo virtual, WhatsApp ou afins, como se o Estado fosse coutada particular. A exemplaridade como a autoridade do merecimento é a excepção. Separa-se ardilosamente a pessoa da função e a função da pessoa, como se o carácter fosse divisível. O pudor já nem sequer é um fiável regulador ou termostato de conduta.

A verdade factual é abastardada pelas múltiplas expressões da mentira: a meia-verdade, a notícia falsa, o rumor, a dilação, o exagero, a publicidade encapotada, a ilusão, a insinuação, a manipulação. A mentira é uma nova especiaria comportamental, bem aceite (ou consentida) e a ‘arte de bem mentir’ é transaccionada por consultores comunicacionais especializados. A mentira é replicada à exaustão nas redes sociais, beneficiando do acriticismo de que parecem padecer a maioria dos seus crédulos.

 

Os poderes transformam-se em sociedades de marketing comercial e de merchandising político. As estatísticas, torturadas a bel-prazer, tornaram-se a mãe de todos os instrumentos de análise, conveniência ou omissão. O Estado de direito, não raro, fica refém de poderes não escrutinados e de forças ocultas ou dissimuladas. Fora do Estado central, orbitam agências, autoridades, organismos públicos que acolhem carreiristas sem currículo a não ser o dos jotismos e de saltos por gabinetes ministeriais. Já lá vai o tempo em que para se ocupar um lugar de alta responsabilidade pública eram necessárias provas de vida, de experiência e de sabedoria.

As fronteiras de interesses entre o que é ou deve ser público e sujeito à tutela do bem-comum e o que é privado está sujeita a subjectivismos interpretativos, volúveis e movediços em função do contexto que existe ou se quer que exista.

É o tempo do talvez, do apesar de, do caso tivesse sido ou de qualquer outra formulação ética adversativa ou condicional. Nada acaba por acontecer diante da irregularidade ou da infracção, possibilitadas por um Estado de direito fraco, permeável, transaccionável q.b., a não ser os costumeiros inquéritos da praxe sem fim à vista e com os responsáveis a assobiar para o lado.

À falta de argumentos ou à boleia da preguiça intelectual, opta-se crescentemente por etiquetagens redutoras, perigosamente simplistas. Os ismos e os istas passaram à categoria de insulto alegremente papagueado que, todavia, esconde, com atrevimento, a ignorância. A moderação é política e mediaticamente desvalorizada, por força do maniqueísmo e do radicalismo que tomaram conta da febril agenda do momento. Os media são tomados por um comentariado em fila indiana, maioritariamente em versão tudóloga e de aversão ao raciocínio mais elaborado. Paradoxalmente, é o tempo em que não saber de nada é a porta de entrada para ser tudo.

 

A correcção política tornou-se obsessiva, e tem sido usada e abusada como um instrumento de controlo da mente, gerando novas e capciosas formas de censura e de catalogação social. A linguagem perde a força da representação genuína para ser um instrumento ao serviço de objectivos ideológicos que se servem da correcção política para moldarem processos de construtivismo social. Já não se diz o que se pensa, tem de se pensar o que se diz de modo considerado correcto.

A soberania reside no povo, dizem os preceitos constitucionais. Qual soberania? A de apenas votar de x em x anos? É sobejamente pouco. E enganoso.