Droga: a saga de mais três projetos

É tempo de parar com todas as oportunidades para alargar a malha do facilitismo ao consumo de droga em vez de introduzir cada vez mais restrições à oferta da mesma

por A. Lourenço Martins
Juiz Conselheiro do STJ Jubilado

1. A Assembleia da República prossegue na discussão de mais projetos sobre droga, dois do PSD, a que se juntou outro do PS, aumentando a já falada ‘manta de retalhos’ da legislação portuguesa. E de afogadilho vota a sua apreciação final.

Procura-se em um deles que a atualização das tabelas de drogas proibidas seja mais célere, especialmente porque as drogas sintéticas se difundem a uma maior velocidade e quantidade; em outro, tenta-se colmatar uma brecha que em face da política de descriminalização de 2000, está atrasada… apenas 15 anos. Em dois deles vai subjacente a mesma ideia de alargamento da descriminalização do consumo de droga.

Vejamos com algum pormenor.

 

AS DROGAS SINTÉTICAS

1.1. Partindo do que se diz ser uma realidade específica da Madeira mas se estenderá aos Açores, onde se destaca a prevalência do consumo de ecstasy e também de Novas Substâncias Psicoativas (NSP), por comparação com outras zonas do país, pretende-se que as listas de drogas proibidas sejam atualizadas com mais rapidez, à medida que a instâncias das Nações Unidas e da União Europeia as vão identificando. E não há dúvida de que a expansão destas NSP não cessa de aumentar – leiam-se os últimos relatórios do OEDT, onde se vê, por exemplo, o crescimento dos canabinóides sintéticos, substâncias altamente potentes em que os produtos adulterados apresentam riscos de envenenamento.

Mas não se deseja somente o aditamento rápido das tabelas das drogas. Com efeito, existe uma portaria na qual se enunciam os montantes da Dose Média Individual Diária (DMID) de consumo das drogas mais frequentes, e onde se querem incluir também aquelas, a fim de que os utentes de tais drogas possam beneficiar do que já se encontra estabelecido sobre a descriminalização. Isto é, que não sejam arguidos criminalmente pela aquisição, posse e consumo de pequenas quantidades mas por contraordenação.

 

JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO

1.2. O projeto do PS debruça-se ainda sobre o resultado da aplicação do acórdão (n.º 8/2008) do STJ de fixação de jurisprudência, procurando alterar a posição adotada. É sabido que a partir da Lei n.º 30/2000, o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de droga deixaram de constituir um crime, passando a ser punidos como contraordenação, não podendo, porém, a detenção exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Mas como lidar com os casos em que alguém seja encontrado com um número de doses para um período superior a 10 dias, sem se saber se destinava a droga ao tráfico ou ao consumo? O Supremo fixou uma orientação no sentido de que se estava perante a prática de um crime.

Sublinham agora os proponentes que esta interpretação levou a que, no ano de 2018, tendo sido condenadas 1820 pessoas, cerca de 57% foram-no por tráfico, mas 43% por consumo e menos de 1% por tráfico-consumo, sendo que em praticamente todas as condenações criminais por consumo foi invocado este acórdão emitido pelo Supremo.

 

OBSERVAÇÕES

2. Quanto à atualização mais rápida das tabelas com as substâncias psicoativas que entretanto as instâncias internacionais vão identificando como perigosas – e sabemos que são já várias centenas – é de saudar o reforço do mecanismo existente, mas que podia ser acionado pela AR mesmo sem qualquer nova lei.

 

2.1. Suscitam-se dúvidas, porém, sobre a caracterização de uma substância como de consumo frequente a partir de um consumo elevado, que pode ser episódico em determinada região do país, parecendo bem mais prudente a realização prévia de um estudo aprofundado, proposta pela Maioria e aprovada pela generalidade do Parlamento, com vista a compreender as causas da maior prevalência de tráfico e consumo de NSP nos Açores e na Madeira.

No geral, e segundo uma indagação recente, as prevalências do consumo das NSP, especialmente na população dos jovens adultos, até baixaram entre 2012 e 2022.

E para além da dificuldade científica em determinar a DMID de uma substância de elevada potência, com base em dados epidemiológicos referentes ao uso habitual, não se vê que a sua posse remeta de imediato para o plano criminal, mesmo antes da alteração sobre as quantidades agora proposta no projeto do PS.

Parece-nos precipitada a iniciativa do PSD, nesta parte.

2.2. No que toca à alteração da jurisprudência fixada pelo STJ, pensamos ter sido dos primeiros a discordar da mesma (na Revista do Ministério Público n.º 115, de Jul/Set 2008), pela falta de coerência lógica com a intenção subjacente à lei da descriminalização de 2000.

Curiosamente, quando em 2007, ainda antes do referido acórdão do STJ, se discutia esta temática na AR, por iniciativa do PSD e do PCP, na altura Oposição, com um texto que, em nossa opinião, se apresentava numa forma bem mais clara e praticável do que o agora proposto pelo PS, a então Maioria rejeitou-o, a pretexto de que teria em carteira um projeto em que estariam iminentes outras medidas mais adequadas de revisão, e que vê a luz do dia… 15 anos depois! A coerência interpretativa que defendi não significava concordância com a ampla descriminalização do consumo de todas as drogas.

Pois a questão de fundo que hoje se coloca, decorridas mais de duas décadas sobre o ano de 2000, já será outra, ao repensar-se sobre o alastramento da difusão da droga, e daí as vozes que se levantam no interior do próprio Governo e dos Serviços, no sentido de uma atitude de maior severidade para com o consumo de drogas, pelo menos em lugares públicos e quanto à permissão de detenção de maiores quantidades de droga no âmbito contraordenacional. A realidade presente não apoiará a solução de 2000.

 

ESTATÍSTICAS E COMPARAÇÃO

3. Mantendo-se a população, entre 2001 e 2021, em níveis idênticos (10.362,7 e 10.407,7, respetivamente), revelam as estatísticas que os crimes de tráfico de droga desde 2000 foram diminuindo – contra o que se esperava poder ser uma maior eficácia das polícias – e os de tráfico-consumo aumentaram. Quanto ao consumo simples, previsto como infração penal anteriormente a 2000, em confronto com o regime posterior das contraordenações, o número de indiciados aumentou.

Como resulta do V Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral, Portugal 2022, entre 2001 e 2022, a prevalência ao longo da vida, para qualquer substância psicoativa ilícita, passou de 7,8 % para 12,8 %, passando as mulheres de uma prevalência de 4,0 % para 7,4 % enquanto os homens passam de 11,7% em 2001 para 18,6% em 2022, com valores aumentados para os jovens adultos (15-34 anos).

Segundo dados do próprio SICAD para 2021, 85% dos indiciados por consumo contraordenacional correspondiam a consumidores não toxicodependentes e 15% a consumidores toxicodependentes, representando um aumento significativo das situações de toxicodependência (9,5%) relativamente ao ano anterior.

De qualquer modo, Portugal continuará, como no início do milénio, com níveis de consumo abaixo dos registados no conjunto dos países europeus

 

REPETIÇÕES INFUNDADAS

4. Na AR, alguns deputados repetem que foi a legislação de 2000 a considerar o toxicodependente como um doente, o que não corresponde à verdade – basta ler os preâmbulos dos diplomas de 1983 e 1993. E que a mudança sobre a descriminalização do consumo seja uma mudança de efeitos ‘históricos’. Quanto a esta, não se minimiza que a ênfase posta no aspeto da Saúde, que a acompanhou, gerou mais atenção ao sofrimento das pessoas e ao tratamento dos toxicodependentes, e isso foi positivo. Embora não se conheça quantos toxicodependentes são recuperados.

Mas saber se o conjunto de recursos humanos, técnicos e financeiros colocados ao dispor dos consumidores de drogas e suas famílias a partir de 2000 poderia resultar melhor com outra política quanto aos consumidores é questão que não tem resposta segura sem uma avaliação independente e exaustiva.

Pensa-se ser tempo de parar com o aproveitamento de todas as oportunidades para alargar a malha do facilitismo ao consumo de droga em vez de introduzir cada vez mais restrições à oferta da mesma e incentivos à responsabilidade social. Os amigos e os familiares dos consumidores e toxicodependentes agradeceriam!

Infelizmente, o que se espera é a insistência próxima pela fraturante legalização de drogas para fins recreativos.