por Virgílio Machado
Professor na UALG e autor de Portugal Geopolítico – História de Uma Identidade
Pela história, os seres humanos avançaram tecnologicamente. Grandes evoluções registaram-se: desde a criação da roda a inovações agrárias até a invenção da imprensa e desenvolvimento da internet. A Inteligência artificial (IA) é mais uma etapa. Começa a tornar-se parte integrante de nossas vidas e irá revolucionar nossa compreensão do mundo.
A IA utiliza algoritmos, números codificados que constituem instrumentos de um processo lógico tendente a um resultado. Os números fazem parte de antigas práticas materiais, como preparação de comida, previsão do tempo ou execução de exercícios contabilísticos. Funcionam como rituais codificados, instrumentos de medição do trabalho e da mercadoria, da marcação e repetição, da disciplina e do poder.
O algoritmo da IA é um Instrumento poderoso de auto-organização na automação de tarefas a serem executadas por máquinas ao invés de humanos. A eficiência aumenta, os custos são reduzidos e mais segurança em tarefas perigosas ou rotineiras é garantida. A IA é e será usada, designadamente, em previsões, consultoria, acesso a dados personalizados, tratamento médico, com o poder, ainda, de criar entre as sete artes.
Que implicações terá a inteligência artificial na política e nos sistemas políticos? E na geopolítica, em particular? Evoluções ou revoluções? Pacíficas ou violentas? Estas são questões fundamentais. Terá razão Yual Harari dizendo que a IA pirateou o sistema operacional da nossa civilização? Antevendo um possível desmoronamento das democracias e a emergência de grandes sistemas centralizados e autoritários de poder?
Outros são menos pessimistas como Ross Adams. Que advogam, pela IA, uma projetualidade tecnocrática, um governo orientado para a administração das coisas, uma tecnopolítica destinada a superar a dimensão arbitrária, corrupta e obsoleta da política humana. Em comum, dir-se-á que a IA será central na discussão política futura com tensões, compromissos, equilíbrios instáveis entre liberdade individual e ação coletiva e nas cedências que os indivíduos assumirão a fim de atingirem, pela IA, mais segurança, eficiência e benefícios coletivos.
Sobre IA, um conhecimento incremental é desejável, por etapas, de aproximação a realidades presumidas ou potenciais baseadas em sinais, tendências e indícios. Entre a multiplicação do capitalismo e a distribuição do socialismo na base da divisão esquerda/ direita conforme Elias Cannetti existirá futuro? Se a IA se aplicar à Justiça, como já defendem alguns juízes, cálculos de eficiência predominarão. Reconhecimento de partilhas, atribuição de direitos na sinalização das diferenças e ações de equilíbrio. O número invadirá a decisão política, desgastando sistemas comparativos entre territórios e instituições aproximando teoremas, criando padrões segundo funções universais. Aquela divisão esbate-se.
E a divisão entre imperium, o mundo organizado das fronteiras dos Estados e suas instituições políticas e dominium, o mundo do mercado mundial onde dinheiro, capital e trabalho circulam livremente, segundo Carl Shmitt? Poderá estar em crise. A circulação da informação, capital e mercadorias será tão acelerada com a IA e de tal forma instantânea com a da produção, que provocará uma revolução na divisão do trabalho, como conhecemos atualmente. Mais homogeneidade e menos intermediação. Com imediata distribuição imediata de espaços, territórios e direitos para suportar e infraestruturar o mundo da circulação.
E que restará da trilogia separação e divisão de poderes legislativo/executivo e judicial democráticas? Que nos preparemos. Para novas formas de divisão política. Ou de interdependência e relação entre esses poderes. Que espaços de subjetivação de ‘Quem conta’ e ‘Quem calcula’ poderão continuar a existir democraticamente? Pode o território onde se vive/trabalha/consome ser parte constituinte dessa subjetivação? Afinal a geopolítica ainda será espaço de esperança do Homem e do Zoon Politikón de Aristóteles?
A IA suporta dois princípios geopolíticos. O da unificação e o da logística. No primeiro, a constelação de fórmulas, modelos, protocolos, manuais, regulamentos, melhores práticas, padrões globais na chamada «construção do estado extraestatal», na expressão de Keller Easterling, que reestruturará a gramática das fronteiras geopolíticas/geoeconómicas, através de singularidades territoriais que explorarão o público, o universal, o coletivo. Ajudarão à circulação do mundo.
A logística, por sua vez, será energia acumulada em infraestruturas físicas, designadamente, armazéns, portos, aeroportos, centros, corredores, contentores, cabos, oleodutos, que investirão necessidades de microgestão e ponderação concreta de avaliações de localização. Produzirão mundo.
Como reagirão os sistemas políticos? E a geopolítica? Que futuro nestas equações? (continua).