A utilidade discreta da guta-percha

Em 1840, Wheatstone já tentara enviar sinais telegráficos através de cabos submarinos no Canal da Mancha, mas aqueles careciam de um isolamento adequado.

A troca imediata de mensagens através de aplicações, redes sociais e e-mails é uma das características distintivas do nosso tempo. Ficamos até ansiosos se a resposta tardar alguns minutos, pouco importando se o interlocutor está próximo de nós ou do outro lado do mundo. Olhando retrospetivamente e excluindo mensageiros e correios, a comunicação escrita remota é, com efeito, uma realidade recente no contexto da nossa civilização. Data do final do século XVIII o primeiro sistema telegráfico, inventado pelo francês Claude Chappe. Na telegrafia, em vez de uma troca física de um objeto portador da mensagem, o remetente utiliza códigos simbólicos, conhecidos pelo destinatário. O telégrafo de Chappe era ótico, baseando-se em postes sinalizadores dispostos em linha reta, a uma distância de 12 a 25 km uns dos outros, permitindo que cada operador visualizasse o anterior e o seguinte. As mensagens eram transmitidas por meio de hastes móveis que assumiam posições diferentes, num total de 196 combinações. A primeira linha, Paris-Lille, consistindo de 15 postes, foi inaugurada em 1794.

 

O telégrafo elétrico de agulhas, de Cooke e Wheatstone, foi patenteado em 1837, tendo inicialmente sido adotado em Inglaterra, sobretudo para o controlo do tráfego ferroviário. Na receção, as posições que as agulhas adquiriam, por ação eletromagnética, correspondiam a caracteres específicos. Nos EUA, Samuel Morse desenvolveu um outro sistema e criou o código de pontos e traços que seria adotado internacionalmente. A mensagem era enviada convertendo os pontos e traços dos caracteres em sinais elétricos, transmitidos pelos cabos condutores. Na receção, os sinais eram reconvertidos em pontos e traços. No primeiro telegrama enviado por Morse, em 1844, podia ler-se a frase bíblica: «Que maravilhas que Deus fez».

Em 1840, Wheatstone já tentara enviar sinais telegráficos através de cabos submarinos no Canal da Mancha, mas aqueles careciam de um isolamento adequado. Foi o grande físico e químico britânico Michael Faraday que, para esse fim, sugeriu a guta-percha, um material obtido a partir do látex de árvores como a Palaquium guta, originária do arquipélago Malaio. O primeiro cabo submarino, a ligar Londres e Paris, foi inaugurado em 1851. Em 1866, as Ilhas Britânicas e a Terra Nova ficaram ligadas por um cabo transatlântico. O nosso país passou a dispor de telegrafia elétrica em 1855, inicialmente com as estações Terreiro do Paço – Cortes – Palácio das Necessidades – Sintra. No ano seguinte, foi estabelecida a linha Lisboa-Elvas, a qual requereu cabos subfluviais. Em 1870, Portugal ficou ligado telegraficamente à Inglaterra, fazendo assim parte da rede que incluía Gibraltar, Malta, Índia e China.

 

Apesar de a guta-percha já ser conhecida no mundo ocidental desde o século XVII, só lhe foi dado uso a partir da década de 1830. Para isso contribuíram o português José d’Almeida Carvalho e Silva e o escocês William Montgomerie, que notaram a versatilidade das suas propriedades. O primeiro foi um médico naval, natural de São Pedro do Sul, que se estabeleceu como comerciante em Singapura e se dedicou ao cultivo de espécies botânicas de interesse económico; o segundo, médico também, viria a dirigir os jardins botânicos experimentais daquela possessão inglesa.

Tal como a borracha (obtida do látex da Hevea brasiliensis), a guta-percha é um polímero de isopreno, embora as suas estruturas moleculares sejam diferentes (a primeira é o cis-poliisopreno; a segunda o trans-poliisopreno), apresentando, por isso, propriedades distintas. Enquanto a borracha é elástica, assim como perecível se não for vulcanizada, a guta-percha é algo rígida, mas é termoplástica, isto é, é moldável quando aquecida, e quimicamente estável. Além do revestimento de cabos, foi usada para mobiliário, adereços diversos e bolas de golfe. Embora no século XX tenha sido substituída por plásticos, ainda é usada nos nossos dias na odontologia como material de preenchimento dos canais radiculares nas desvitalizações de dentes.

Sempre a par do melhor que a civilização tinha para oferecer, Eça de Queirós referiu-a em alguns dos seus romances. O mesmo Eça que, n’A Cidade e as Serras, criou o personagem de Jacinto, que acaba por trocar a sofisticação e os gadgets tecnológicos de Paris pelo bucolismo e o arroz de favas de Tormes.