Alfonsa não é um nome comum, mas Alfonsa também não foi uma mulher comum. Carinhosamente chamavam-lhe Alfonsina. De nome completo, oficial e testemunhado em cartório notarial era Alfonsa Rosa Maria Morini. Olhava em seu redor e só via homens. Pois, que remédio: era a única ciclista que participava nas grandes competições. Claro que isto foi há muito tempo quando o desporto era algo para calções e não para saiotes. Na Volta a Itália de 1924 enganou, e bem, os juízes da prova e fez-se passar por um rapaz. Entretanto ganhara o nome do marido: Strada. Podia lá ser apelido melhor para quem engolia sobre duas rodas quilómetros e quilómetros de estrada.
Não sei ao certo porquê mas mal me deparei com a vida de Alfonsina Strada, o Diabo de Saias, percebi que nascera numa família pobre. Nada contra as famílias pobres, era o que faltava. Conheci muitas e conheci as dificuldades que um homem – neste caso mulher – atravessa para se manter no rumo vertical da honradez. Não sou como a grandessíssima aventesma que resolveu soltar a frase assassina: «São pobres? Façam-se ricos!». Ou como aquela rainha que ficou coma cabeça separada dos ombros mas que enquanto a teve no sítio soltava com despudor: «Não têm pão? Comam brioches!». Ora, Alfonsina comeu pão e duro. Às vezes punha-o de molho para poder mastigá-lo. Nasceu em 16 de março de 1891 em Riolo di Castellfranco Emilia, na Emilia-Romagna, não longe de Modena. Aos 14 anos já não largava a bicicleta que o pai lhe oferecera. Houve quem apostasse que era uma mania passageira. Houve quem achasse a sua paixão escandalosa. Houve quem lhe lesse no brilho dos olhos uma vontade indomável de viver sentada num selim com os pés a dar a dar como os alcatruzes de uma nora. Alfonsina era de ideias fixas. E fixou-se na de se tornar ciclista. Mesmo que não houvesse mais nenhuma para lhe fazer companhia. Olhava em volta e só via homens; olhava em volta e só via adversários que fazia questão de vencer. Com apenas 12 anos viajou até à Rússia. Tinha ganho uma prova para miúdos de ambos os sexos disputada em Bolonha. O prémio pela vitória foi um porco vivo. O porco não lhe dava jeito nenhum mas deu um jeitão aos pais que tinham galinhas no mísero quintal das traseiras. O porco vinha mesmo a calhar para roncar por entre o cacarejar dos galináceos. Os jornais contam a história e exageraram bastante a proeza de Alfonsina. Não que não merecesse elogios mas, que diacho!, tratava-se de uma competição infantil. Os ecos da rapariguinha que ganhara um porco chegaram, imagine-se!, aos ouvidos da czarina Alexandra que a convidou pessoalmente para participar no Grande Prémio de São Petersburgo de 1909. Adorou conhecê-la. E teimou com o marido, o czar Nicolau II, que era fundamental oferecer-lhe uma medalha de ouro.
Calculo que quando a garota regressou a casa, o pai tratou de enfiar a medalha de ouro no prego. Mas Alfonsina já voava movida a pedais. Casou-se com Luigi Strada, um bem-falante turinês que tratou de lhe fazer todas as vontades, sobretudo oferecendo-lhe os modelos de bicicletas mais modernos que iam aparecendo por toda a Europa. Como sempre acontece surgiram vozes irritadas com o sucesso da pequena. Em 1923, uma publicação francamente preconceituosa e intitulada Almanaque das Mulheres Italianas resolveu trazer a lume um comentário desagradável que lhe era directamente dirigido: «As mulheres não devem forçar o corpo a excessos perigosos e a exageros ridículos». Ela não tardou a dar-lhes o ridículo.
Quando toda a gente percebeu que Alfonsina Strada estava embrenhada no pelotão da Volta a Itália de 1924 era tarde demais para a mandar parar. Seria até ofensivo para certas cabeças mais lavadas. Terá tido a matreirice de se inscrever com o nome de Alfonsin, mas também há biógrafos seus que levam a mal esta versão machista. Como alguns dos grandes nomes do ciclismo italiano desse tempo, acima de todos Girardengo e Ottavio Bottecchia, não participaram no Giro, reclamando prémios monetários para se apresentarem à partida, Alfonsina e la Bici tornou-se a grande novela diária da Gazzetta dello Sport, patrocinadora da corrida. Ao fim da sétima etapa Alfonsina continuava a bater-se ferozmente, uma ilha-mulher rodeada de homens por toda a parte. A oitava etapa foi-lhe fatal: chovia cães e gatos e macacos de rabos cortados, uma tempestade de vento forte abalou todo o pelotão. Strada foi vítima de três furos e, no fim, acabou por ser eliminada por chegar fora do controlo. No entanto, Emilio Colombo, o chefe de redação da Gazzetta não se conformou com a ausência de Alfonsina e deu-lhe carta branca para continuar a correr embora sem contar para a classificação. Chegou ao fim. Cumpriu mais de 3500 quilómetros. Ao cortar a meta, desceu da bicicleta e chorou. Não são só os homens que choram.
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