FMM. Quando a música fala com o céu

Este ano, mais uma vez, Porto Covo e Sines receberam milhares de pessoas oriundas de todas as partes do mundo para a 23º Edição do Festival Músicas do Mundo (FMM). Desde o pôr do sol até ao amanhecer as pessoas dançaram o mundo ao som de 47 concertos, amaram-se, partilharam a sua arte e foram livres. 

A semana do Festival Músicas do Mundo (FMM), na Costa Vicentina, ainda não havia começado e, nos cafés, não se ouvia falar de outra coisa. De miúdos a graúdos, tanto em Vila Nova de Santo André como em Sines, todos ansiavam pelo começo daqueles que são, para muitos, “os melhores dias do ano”. Uns em Porto Covo, onde se inicia o Festival, outros em Sines, onde continua e termina. No rosto das pessoas, vê-se alegria.  

Dança, sorrisos, partilha, música, mar, areia, muralhas, caravanas, tendas, amizades. “Só quem o vive sabe”, defende Leonor Martins. Desde pequena que vive estes dias intensamente, no princípio no colo da mãe, depois no carrinho e, agora, já adulta, faz questão de transformar o seu carro num t0, para não perder nenhum momento. “Sinto-me uma sortuda por ter um Festival tão especial como este perto de casa”, continua.  

A jovem de 25 anos vive em Vila Nova de Santo André e, por isso, todos os anos, tenta aproveitar ao máximo os oito dias que compõem o evento. “Não dá para explicar a energia que se vive, principalmente em Sines. É que me arrisco a dizer que as pessoas até podem vir sozinhas, porque aqui toda a gente abraça toda a gente e facilmente se fazem amigos”, revela. “O Festival começa sempre no Largo de Porto Covo, aí é tudo mais familiar. No ano antes da pandemia acampámos com os meus sobrinhos, tinham apenas dois anos e deu para gerir tudo muito bem”, explica, acrescentando que nos dias que se seguem, na cidade de Sines, as coisas são mais confusas e intensas. “Em Sines é muito mais gente! As pessoas estão muito mais soltas e já estão com o balanço dos dias anteriores”, conta.  

Este ano, em Porto Covo, ansiava pelo concerto da mexicana Silvana Estrada. E não ficou desiludida. “Ouço a Silvana quase todos os dias em casa, com a minha melhor amiga. Descobrimos a artista e ficámos apaixonadas. Fez parte de um momento muito importante no nosso processo. Nunca pensei que conseguíssemos ter a oportunidade de ouvi-la e aqui, tão perto de casa”, admitiu, frisando que “foi um momento único”, em que, abraçada à sua amiga, “se arrepiou em cada nota”. “É feminista, canta as dores, dança o amor e tem uma voz que parece vir de outro planeta”, reforçou.  

Já António Ferraz, de 55 anos, que já não tem a mesma vontade que tinha em tempos de ir ao festival, esperava Chico César que o acompanha há muitos anos, em muitos momentos da sua vida. “Gosto muito da língua portuguesa. Gosto muito da música brasileira. O Chico César é uma referência e o concerto foi um dos melhores que vi no festival até hoje”, defendeu, lembrando que este cantou êxitos como ‘Deus Me Proteja”, ‘Mama África’ e ‘À Primeira Vista’. “As pessoas cantaram-nas em uníssono e, para mim, a música é das coisas que mais as une. Foi um momento muito bonito, um cruzar de gerações!”, afirma.

“A determinada altura do ano, viver torna-se numa contagem decrescente para o FMM que invade de alegria, diversidade e música a cidade vizinha”, conta, por sua vez, Bárbara Gonçalves, de 29 anos e também moradora de Vila Nova de Santo André. Segundo a tatuadora do estúdio Skin Art Tattoo, quando chega a altura de o viver, “torna-se contagiante o contacto com culturas tão distintas”. “Pessoas que nos enchem o peito pelo simples facto de nos olharem olhos nos olhos e percebe-se como um simples sorriso em tom de cumprimento, pode mudar o dia de uma pessoa”, descreve. “Dançar ao som de músicas e artistas talentosos, cuja diversidade cultural nos faz ter pedaços do mundo concentrados num sítio só, eleva-nos para um plano que foge à monotonia do dia-a-dia, que nos desperta a curiosidade e nos faz balançar ao ritmo de tantos países distintos”, acrescenta a jovem. Para si, o FMM é essa magia, de poder viver nesses dias tantas vidas, tantas cores, tantos sons. “Empatia generalizada e descoberta de tantas músicas que a partir daí farão parte da nossa playlist e de momentos particularmente especiais da nossa vida. O FMM fica gravado, na alma e para a vida! Um festival a conhecer e a vontade de querer sempre voltar”, admite.

 Arte em todo o lado 

Os candeeiros públicos iluminam o espaço com uma cor quente. Casas tipicamente alentejanas circundam o espaço. O palco, fixado em frente à igreja da freguesia, ocupa quase todo o largo, deixando pouca margem para todas as pessoas que aqui chegam. E são muitas!  

 Perto do Mercado, este ano, há barraquinhas de comida que se misturam com as tendinhas de artesanato. Mel já vem ao festival há alguns anos. “É sempre um bom momento para partilharmos a nossa arte”, afirma a jovem de 30 anos, com umas longas rastas loiras. “Este ano não consegui ir ao BOOM, que para mim é o pai do FMM. Mas não faz mal, porque felizmente temos esta opção”, revela. Os seus colares são feitos de corda, no centro pequenas pedras de várias cores. “É um dois em um. Venho vender e dar a conhecer a minha arte, ouço música fantástica e conheço muita gente”, conta, acrescentando que não é em todos os festivais que isto é possível. “Como os festivais costumam ser fechados, há sempre burocracia por trás das licenças para estarmos no espaço. Aqui isso não acontece. Somos todos bem-vindos. Conseguimos sempre um espacinho e há sempre encontros maravilhosos. Além disso, podemos trazer os nossos animais de estimação”, frisa a jovem de Alcobaça.  

 Vêem-se grupos sentados em rodas, artistas fazem fogo, outros tocam instrumentos. Mesmo nos momentos em que não se ouve música saída das colunas, os espectadores fazem questão de fazer o seu próprio espetáculo. E, quando terminam os concertos, o som dos jambés dá sinal para a viagem até à praia onde se dão os conhecidos “afters”. Aqui, na falésia, em cada mesa, ouve-se um estilo de música diferente. A única luz é a da lua e de alguns telemóveis. Há pessoas a vender cerveja que boia num caixote do lixo limpo, cheio de água e gelo. As pessoas abraçam-se e dançam sem preconceitos. Há mesmo quem estejam de pés nus.  

  Em Porto Covo os espectadores puderam ainda assistir à atuação de Expresso Transatlântico (Portugal), Eneida Marta (Guiné-Bissau), Leenalchi (Coreia do Sul), La Chica (França / Venezuela), Lass (Senegal), Mari kalkun (Estónia) e Brama (Occitânia – França).  

  Entre muralhas e à beira-mar  

  

A viagem segue rumo a Sines, “onde tudo acontece”. Aqui, as pessoas podem optar por comprar o passe para todos os dias, que dá entrada para o Castelo, ou podem optar por assistir aos concertos pagos do lado de fora já que, espalhados pelas ruas perto do Castelo e pela baía, há ecrãs que permitem ver o que acontece dentro das muralhas. Além disso, fora do Castelo, há também grandes concertos que se espalham pelos últimos quatro dias, tanto no Pátio das Artes, como na Avenida Vasco da Gama, mesmo perto do mar. Recorde-se que o FMM foi criado em 1999 com o objetivo de “valorizar o Castelo de Sines”, ligado à biografia do navegador Vasco da Gama, através de um acontecimento que mostrasse a diversidade das expressões musicais do mundo. Hoje, o festival ultrapassa fisicamente as fronteiras do Castelo e «dar a descobrir» é a sua filosofia. 

  

Um dos únicos problemas, para as pessoas que aqui chegam e que, segundo a organização, são cada vez mais, é o local onde podem acampar. Devido à lotação do espaço, falta de sombras e de condições, os carros, carrinhas, roulottes e caravanas espalham-se por toda a cidade, mesmo nos locais menos oportunos.  

  

É difícil passarmos numa rua sem avistar acampamentos, ou pessoas a dormir nas sombras das árvores. Mas, ao que parece, os moradores já estão habituados e fazem parte da festa. “São apenas quatro dias durante um ano inteiro. Acho que devemos ser pacientes e deixar que as pessoas se divirtam”, afirma Eulália Ferreira, moradora da cidade. Para si, não vale a pena estar a criar confusão já que o FMM sempre foi de Sines. “Claro que por mais que os concertos acabem mais cedo (se bem me recordo antes da pandemia, o último era às 5h30 da manhã), as pessoas acabam por se espalhar pelos espaços com colunas… Querem continuar a festa. Não me parece que seja grave. As pessoas aqui estão todas contentes e não costumam ser mal-educadas”, revela a senhora de 65 anos.  

  

Os concertos começam às 16h30 e estendem-se até às 3h30, fazendo assim com que todas as pessoas, das várias faixas etárias, os possam aproveitar. No dia 26 de julho, entre os vários artistas, os festivaleiros puderam ouvir dentro das muralhas a Garota Não (Portugal), Carminho (Portugal), Lila Downs (México) e Cimafunk (Cuba), grupo que, com óculos de sol e muita energia, meteu toda a gente a levantar o pé do chão. Depois disso, já perto da praia, o artista Brushy One String (Jamaica), fez-nos regressar a alguns dos hits do reggae, com a sua voz rouca e quente, terminando depois a noite ao som do grupo Kin'gongolo Kiniata (R. D. Congo).   

  

Segundo o site oficial do Festival, a programação do FMM abarca a largueza da “world music” e transcende as suas fronteiras. Abre-se à folk, ao jazz, à música alternativa, à fusão e às músicas urbanas. “Mais do que um festival de ‘world music’ ou música de raiz tradicional, o FMM Sines é um festival que procura as músicas do mundo reais como são feitas e vividas no nosso tempo: músicas miscigenadas, marcadas pelos contactos entre artistas de origens geográficas e culturais diferentes, devedoras dos movimentos de ideias e pessoas que definem a contemporaneidade”, lê-se no mesmo texto de apresentação. 

  

No dia 27 de junho, foi Rita Braga (Portugal) que abriu os espetáculos. Seguiu-se a também portuguesa Rita Vian que surpreendeu os estrangeiros com a sua voz, já conhecida entre os portugueses. Nessa noite, os espectadores puderam ficar a conhecer Gilsons (Brasil), viajando depois até Marrocos com o grupo Bab L’Bluz, ouvindo os instrumentos de Tinariwen (Povo Tuaregue – Mali) e sendo surpreendidos pelas pela voz que parecia falar com o céu do vocalista do grupo Alright Mela Meets Santoo (Paquistão / França). No palco Vasco da Gama foram os grupos África Negra (São Tomé e Príncipe) e Alogte Oho & His Sounds of Joy (Gana) que meteram o público a dançar.  

  

Mas foi no dia 28 de junho que Luísa Maria, de 59 anos, se apaixonou por Maria João & Carlos Bica Quarteto. “Adoro o festival e toda a sua filosofia. Adoro a maioria dos concertos. Tento sempre ver alguns todos os anos. Este ano, a Maria João surpreendeu-me muito. Já conhecia o seu trabalho e fiquei a gostar ainda mais. É tão querida, é muito bonito quando sentimos isso da parte dos artistas. Além daquela voz e de toda a personalidade que a caracteriza”, afirma. Com o passar do tempo, Luísa foi passando o gosto aos seus filhos: “Trago-os sempre, desde pequeninos. Hoje gostam mais do que eu! Só não vou para o meio do público com eles, porque também quero estar perto dos meus amigos, ou que os meus netos pequenos aproveitem”, revela, acrescentando que das bancadas, sentados, também se consegue ver perfeitamente o concerto. 

  

Mas, para si, o Festival é muito mais do que apenas boa música: “Ao longo de vários dias podemos viver a magia num lugar maravilhoso que é Sines, com o seu castelo e a sua praia. É em Porto Covo que tudo começa… Descobrimos vários universos paralelos nas ruas que vão desde as animações espontâneas, às artes artesanais e performativas, à gastronomia, entre muitas outras”, garantiu. 

  

Antes da atuação de Maria João, às 21 horas, já com o sol a tornar-se tímido, foi Tó Trips Trio (Portugal) que atuou. Às 22h15, o espanhol Rodrigo Cuevas surpreendeu todos começando o espetáculo em cima de uma muralha, iluminado por um holofote e pelas suas vestimentas extravagantes. Seguiu-se Inna de Yard (Jamaica), The Selecter (Reino Unido) e, a terminar, Al Gasar feat. Alsarah (França / Líbano / Arménia / Sudão) e Tabanka Djaz (Guiné-Bissau), a dar autorização para o sol nascer. 

  

  

  

Recorde de assistência  

  

Já neste dia se observava uma enorme afluência, com pessoas, segundo muitos, que chegaram diretamente do festival BOOM, para aproveitar os dois últimos dias do FMM. Em comunicado, no princípio da semana, a organização apontava a necessidade de melhorar as entradas de pessoas para os concertos no castelo, até porque as vendas de bilhetes para este espaço aumentaram 24%. A 23º edição do Festival bateu recorde de assistência, com "mais de 100.000 espectadores”.  

  

No último dia, 29 de junho, a tarde foi marcada pelas atuações de Bedouin Burger (Líbano / Síria) e do cantautor lisboeta B Fachada. 

  

Nessa noite, apesar de já se sentir algum cansaço na cara das pessoas, continuam a não faltar sorrisos afáveis. As pessoas dançam como quem se despede de mais um ano de FMM, já ansiosas para que os dias passem e possam viver tudo de novo. As filas para a cerveja continuam grandes, tais como as das casas de banho. Ao subir o monte rodeado por muralhas, os olhares cruzam-se em sinónimo de gratidão. Céu (Brasil), foi a primeira da noite, seguida de Nneka e o grupo Ghorwane (Moçambique). Para fechar a arte no castelo, o grupo Os Tubarões (Cabo Verde), começou o espetáculo com fogo de artifício, tal como acontece todos os anos com aqueles que fecham as portas.  

  

A viagem terminou, mais uma vez, junto da praia, repleta de grupos que convivem, outros que dormem, outros que dançam. Há mesmo quem de roupa interior se banhe e salte dentro da água. 

  

Com Super Mama Djombo (Guiné-Bissau) e Bamba Wassoulou Groove (Mali), Sines explodiu de amor. Já se veem canas no ar, as pessoas a abraçarem-se, lágrimas em alguns olhos. São 4h30, as luzes dos ecrãs e do palco ligam-se. Muitos se despedem, outros, haverão de encontrar outro local para continuar a festa.