Por A. Lourenço Martins, Juiz Conselheiro do STJ Jubilado
Decorridos cerca de seis meses sobre a divulgação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI), parece possível começar a analisar mais objetivamente os efeitos de tal iniciativa, desencadeada pela própria Igreja. Apenas abordarei a forma de recolha dos elementos do relatório e sua divulgação, assim como a previsão do número de abusos, concluindo com um testemunho individual.
RECOLHA E DIVULGAÇÃO DE ELEMENTOS
2. A CI fez questão de esclarecer que não se tratou de uma investigação de natureza criminal mas de um estudo ou investigação científica. Seja o que seja, a feição como se encontra organizado o relatório, mas especialmente como foi divulgado através dos meios de comunicação social mais impactantes, suscitou polémica. Numa parte dessa divulgação, nos termos em que o foi, tornou-se injustificada e desnecessária. Com efeito, os casos sucedidos – no período que vai de 1950 a 2022 -, alguns de índole escabrosa, a ocultação que a Igreja fez de muitos deles, logo a partir dos hierarcas de topo, tudo aliado ao sofrimento e abandono das vítimas, não precisavam de mais publicidade utilitária, com leituras televisivas de cartas e declarações selecionadas, feitas em horários ‘nobres’.
3. O relatório contem pontos de superioridade teórica e deu visibilidade a tão execráveis abusos sexuais, que deixaram marcas indeléveis na formação da personalidade das crianças e jovens vítimas, mas há aspetos criticáveis, que denunciam um certo caráter exibicionista da própria CI (pp. 263, 290 e 341), e o endeusamento da publicitação.
Pretendeu a CI que as declarações lhe chegassem de forma completamente espontânea, pela via presencial numa pequena parte, ou por correio eletrónico, na maior parte em resposta a inquérito online, aqui sem qualquer ‘contraditório’, isto é, sem nenhuma interferência do recetor da denúncia. Se nas declarações presenciais se diz ter havido uma ‘escuta ativa’, já nas restantes essa total liberdade nas declarações não é sinónimo de fidedignidade, pois sabe-se como o auto-relatante nem sempre se apercebe de contradições, omissões essenciais, deficiência de base ou circunstanciais.
Ressalve-se a parte da análise dos Arquivos Históricos diocesanos, que é feita com menos exposição, mais ponderação, sem que tal impeça o conhecimento dos dados importantes.
Atentando naquela forma de recolha, não acompanharia a CI na divulgação incontida de declarações das vítimas, algumas de teor muito íntimo, resultando em agravamento da fragilidade das mesmas, no seu meio restrito ou mais alargado se houver investigação posterior.
Tal divulgação contribuiu para que o ‘todo’ da Igreja Católica portuguesa – bispos, padres, religiosos/as, seminaristas, escuteiros – fosse atingido por um labéu injusto, embora a CI fale, quanto aos abusadores, numa «franja reduzida de um grande universo», ao mesmo tempo que admite que esse estigma negativo possa ferir todos os membros saudáveis da estrutura, constituindo um «dano ético colateral» (p. 153). Parece eticamente insuficiente este arrazoado da CI, contrariando o princípio ético da não-maleficência, ou seja, não provocar danos naqueles que em nada os mereciam. Porventura afetando até alguns daqueles que desejariam abraçar a carreira eclesiástica ou religiosa.
A QUANTIFICAÇÃO
4. Outro ponto controverso tem a ver com o cálculo do número global das vítimas, não se minimizando que um só caso já será sempre condenável, particularmente em instituições às quais cabe vigiar pela proteção e formação sadia de todas as crianças que lhes são confiadas.
Das 512 vítimas queixosas partiu-se para a suspeita de 4.815 (512+4303, um número ‘descoberto’ pela CI), ao longo dos 70 anos – o arco temporal abrangido pela CI -, afirmando-se que se trata de uma estimativa grosseira. Também creio que a estimativa é grosseira, mesmo em face dos elementos constantes do Relatório.
4.1. Em vários lugares se referem as dificuldades em quantificar o número de vítimas.
Diz-se a certa altura (p. 77) que os números são variáveis, mas nas situações de abuso sexual de crianças estima-se que a parte conhecida seja apenas 20 a 30% da totalidade do ocorrido, permanecendo a restante como omissa ou desconhecida no momento vivido e ao longo do tempo.
Mas se a parte conhecida (512 casos) expressar 20%, o total teriam sido cerca de 2.560 casos, e se fosse 30%, então cerca de 1706 casos, bastante longe dos 4.815, e que em algumas asserções do relatório deveriam ainda ser encarados como a ponta do iceberg.
4.2. É a própria CI a adiantar a questão do ‘número’ como um provável elemento-chave do debate público (p. 150), por isso se ocupou a definir «critérios o mais transparentes e rigorosos possível… que permitissem calcular, sempre por defeito, os números a considerar como totais, o que, tendo sido feito, levou a uma expressão quantitativa aproximada de abusos, assumidamente inferior ao que outro tipo de critério, mais aberto e menos exigente, poderia, também legitimamente, conduzir», remetendo para os capítulos 4 e 7.
Só que os ‘critérios transparentes’ não se veem naqueles capítulos do relatório, designadamente na tabela de equivalências (p. 201), em moldes que possam sustentar um cálculo que viabilizasse o número dos 4303 para somar aos 512. E a comparação com a amostra francesa em nada esclarece sobre os critérios. Sendo uma matéria tão relevante – no entender da própria CI -, era exigível que não se lançassem estes números sem um rigoroso fundamento, desde logo pelo impacto especulativo que iriam criar, e criaram, na opinião pública e ficaram, arredondados para os 5.000.
No inquérito online perguntava-se aos participantes se sabiam ou suspeitavam de quantas pessoas estavam a ser vítimas de abusos, e do que foi dito extraiu-se o seguinte: «As respostas a esta questão foram muito diversificadas. Em alguns casos, apresentam quantificações muito precisas e detalhadas que incluem, por exemplo, os nomes de outras vítimas, uma referência específica ao abusador e ao local ou circunstância em que o abuso teve lugar. Noutros casos, as respostas são vagas, impressionistas e especulativas. Por esse motivo, a quantificação da rede de pessoas vítimas, que seria sempre arriscada e difícil tendo por base um instrumento desta natureza, torna-se particularmente imprecisa».
4.3. Depois destas reticências da CI e particularmente da equipa que fez a análise dos Arquivos Históricos das dioceses, e na ausência de uma explícita fundamentação científica mínima, não se compreende como se chega àqueles números.
A meu ver, esta parte do Relatório não revela um cálculo científico merecedor de crédito.
OS SEMINÁRIOS
5. Segundo a CI, muitos dos abusos terão sido cometidos nos seminários (23% dos casos), sobretudo no início do período que a CI examinou.
Frequentei o seminário, e tal como advém de outros testemunhos prestados à CI, guardo uma boa lembrança desses anos, tendo desfrutado de um ensino sólido em humanidades e ciências, entretecido no desporto e artes (especialmente na música), o que deixou rasto pela Vida, e daqui rendo uma ainda que modesta homenagem à generalidade dos corpos docentes de que beneficiei.
Dos padres que os constituíam nunca observei qualquer manifestação de abuso sexual, sendo visível sim, nessa altura, a preocupação com os indícios de homossexualidade, numa comunidade de cerca de 200 jovens do mesmo género.
Como a CI bem anota, o modelo de formação não era o mais propício e forçosamente teve que evoluir, e será ainda insuficiente.
Um reparo: a Igreja Católica, creio que deliberadamente, lecionava nos seminários um curriculum escolar com algumas divergências das disciplinas ministradas no ensino oficial, redundando num prejuízo flagrante na transição dos que saíam do seminário, com perda de anos académicos, o que funcionaria como forma de pressão (ilegítima) para o não abandono do seminário.
O TEMPO E O MODO
6. Semelhantemente ao que hoje se discute sobre factos históricos da colonização também aqui é fácil de ver, à luz da perceção atual dos valores e da realidade, muito mais pontos negros na vivência social anterior, os quais escapavam a uma sensibilidade que simplesmente não existia ou estava sufocada. E também é evidente que não podem ser avaliados na mesma ótica de gravidade comportamentos muito distintos.
Como a CI também salienta, surgem hoje matérias incontornáveis na apreciação como sejam, por exemplo, a abordagem da sexualidade pela Igreja, a discussão do celibato, o acesso reprimido da Mulher aos cargos e múnus dentro da Igreja, discussões atrasadas mas indispensáveis.
Da leitura do relatório sobressaem dois aspetos que em concreto exigem um estudo aprofundado com vista a encontrar soluções: a ausência de autocensura dos abusadores e o prolongamento da atividade que teve lugar precisamente nos abusos mais graves.
Valerá a pena voltar sobre o tema do que está a ser feito pela Igreja em apoio às vítimas e também sobre os resultados dos processos canónicos e civis instaurados aos arguidos abusadores. A vinda do Papa Francisco à JMJ, o grande impulsionador desta reviravolta sobre a face oculta da Igreja, deixará as suas marcas.