Níger. Arco de Instabilidade

O golpe de Estado no Níger ameaça pôr em causa os equilíbrios geopolíticos na região do Sahel.

O Níger era tido, até há pouco tempo, como o último bastião de estabilidade no Sahel. Mas o recente golpe de Estado traz mais incerteza e instabilidade a uma região volátil, onde as Nações Unidas, a França e os Estados Unidos são vistos, cada vez mais, com desconfiança, e o Grupo Wagner como um potencial aliado.

Os acontecimentos recentes expõem os limites das sucessivas intervenções levadas a cabo por atores externos, e a dificuldade em encontrar legitimidade e estabilidade política numa região onde convergem atores com interesses e prioridades divergentes, desde grupos insurgentes, a redes de crime organizado, organizações não governamentais ou forças militares internacionais.

 

Efeito dominó

O golpe militar no Níger é o quinto desde que o país se tornou independente, em 1960, e o sétimo dos últimos três anos nas regiões da África Central e Ocidental. 

Na quarta-feira, 26 de julho, a Guarda Presidencial deteve o Presidente Mohamed Bazoum. 

Dois dias depois, o general Abdourahamane Tchiani autoproclamou-se chefe de Estado. Seguindo um guião já conhecido na região, os militares fecharam as fronteiras, suspenderam a Constituição e impuseram o recolher obrigatório. 

Mohamed Bazoum foi eleito em 2021, numas eleições que foram também a primeira transição de poder estável desde a independência. No entanto, como no Mali e no Burkina Faso, a ameaça de grupos terroristas ligados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico criou um contexto securitário propício à tomada de poder pelos militares. Politicamente, a crescente mobilização da sociedade civil, através de plataformas como o M62, contra a presença francesa e a proibição, pelo regime, de manifestações públicas contra a França também abriram caminho para o golpe de Estado. 

O Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, que implementou uma operação de evacuação dos cidadãos franceses do país, emitiu um comunicado declarando: «A França não reconhece as autoridades resultantes do putsch liderado pelo General Tchiani». 

A União Europeia, que como a França e a Alemanha anunciou a suspensão da ajuda externa ao país, condenou o golpe. Josep Borell descreveu os acontecimentos como «um ataque inaceitável às instituições republicanas do Níger, que terá consequências para a parceria e cooperação entre a UE e o país, nas suas variadas dimensões».

Anthony Blinken, por sua vez, apelou à libertação imediata do Presidente. Mas a Administração Biden, que descreve a situação como ‘fluída’ e mantém a esperança numa reversão do golpe, está perante um difícil dilema. Caso a situação se mantenha, e confirmando-se o golpe de Estado, Washington seria obrigado a suspender a ajuda militar e financeira ao Níger, o que se traduziria numa redução da influência americana na região, e numa vantagem para outros potenciais aliados, como Moscovo, e para os grupos terroristas que ali operam. 

Tentando manter-se fiel ao princípio de ‘tolerância zero’ em relação a tomadas inconstitucionais do poder, a CEDEAO já suspendeu a Guiné, o Mali e o Burkina Faso. O Presidente nigeriano, que tomou posse como presidente da Organização em julho, deixou agora um aviso ao Níger: «Não permitiremos que haja golpes atrás de golpes na sub-região». No domingo, a CEDEAO fez um ultimato à Junta, dando o prazo de uma semana para a libertação do Presidente e afirmando não excluir o uso da força, caso as suas exigências não sejam cumpridas. Na quarta-feira, chegou ao Níger uma delegação da CEDEAO com o propósito de procurar uma solução para a situação.

Mas, neste momento, o cenário de intervenção externa é pouco provável, e uma das consequências possíveis do golpe é que, como o Mali e o Burkina Faso, o Níger redesenhe a sua estratégia de alianças, voltando-se para Moscovo. 

Na segunda-feira, o Mali e o Burkina Faso emitiram um comunicado conjunto, declarando que «qualquer intervenção militar contra o Níger será considerada o equivalente a uma declaração de guerra contra o Burkina Faso e o Mali». 

 

Grupo Wagner em África 

Entretanto, no Telegram circulou uma mensagem de áudio atribuída a Yevgeny Prigozhin, líder do Grupo Wagner, congratulando-se pelo golpe de Estado, que descreveu como «a luta do povo do Níger contra os seus colonizadores» e afirmando que «mil combatentes Wagner são capazes de restaurar a ordem e destruir os terroristas, impedindo-os de atacar a população civil».

Neste momento, estima-se que o Grupo tenha cerca de 5 mil mercenários no continente, distribuídos pela Líbia, o Sudão, a República Centro-Africana e o Mali. 

Os termos desta presença, nos diferentes países, seguem um padrão semelhante. Em troca da prestação de serviços de segurança, treinamento ou provisão de armamento, o Grupo é pago em dinheiro ou mediante o acesso a concessões de exploração de recursos. 

Na Líbia, o Grupo Wagner esteve envolvido na Guerra Civil, apoiando o General Khalifa Haftar. No Sudão, depois de Omar al-Bashir ter oferecido o país a Putin como ‘porta de entrada’ em África, o Grupo Wagner envolveu-se no treino de forças paramilitares e na segurança e exploração de minas de ouro. Já depois da queda de Omar-al-Bashir, o Governo sudanês assinou com Moscovo um acordo para o estabelecimento de uma base militar russa no Porto Sudão. Na RCA, a ligação remonta a 2017, quando o Presidente Faustin-Archange Touadéra pediu apoio a Moscovo para reconstruir o exército do país. Em 2018, o Governo assinava os primeiros contratos com o Grupo Wagner e, desde então, empresas ligadas a Yevgeny Prigozhin têm tido acesso a contratos de exploração de ouro e diamantes. No Mali, o grupo de mercenários está presente desde 2021 quando, depois do golpe de Estado e da tomada do poder pela Junta Militar, veio preencher o vazio deixado pela França e pela ONU. 

 

Vantagem mútua 

Tudo indica que a tentativa de motim ensaiada por Yevgeny Prigozhin não impactará as operações do grupo em África. Desde logo porque se trata de uma situação mutuamente vantajosa, mediante a qual o Grupo Wagner (e, através dele, Moscovo) assegura o acesso a financiamento, recursos e influência, enquanto os regimes da região tentam consolidar-se no poder e estabelecem alianças com parceiros que, ao contrário da UE ou da França, não impõem condições de natureza política. 

No fim de junho, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, afirmou que: «O futuro dos acordos entre os países africanos e a companhia militar privada Wagner está, em primeiro lugar, nas mãos dos governos, a quem cabe decidir se estão ou não interessados em continuar esta forma de cooperação». E, durante a Cimeira Rússia-África, Lavrov confirmou que os operacionais do Grupo Wagner iriam permanecer na República Centro-Africana e no Mali para ‘defender governos’ que, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros e numa alusão ao falhanço das operações de estabilização e manutenção da paz, teriam sido «abandonados» pelos seus aliados europeus. 

Por outro lado, o regime de sanções imposto a Yevgeny Prigozhin e a outras figuras associadas ao Grupo Wagner desde 2016 não tem sido eficaz. Segundo uma investigação do Financial Times, Prigozhin acumulou mais de 250 milhões de dólares nos quatro anos que antecederam a invasão da Ucrânia, através da extração de recursos como petróleo, gás, diamantes ou ouro. 

Em junho, após o motim falhado, o Tesouro Norte-americano impôs novas sanções a empresas alegadamente envolvidas em tráfico de ouro e financiamento do Grupo Wagner. Num comunicado oficial, o subsecretário do Tesouro para o Terrorismo e Intelligence Financeira, Brian Nelson, garantiu que «Os Estados Unidos continuarão a visar os fluxos de financiamento do grupo Wagner, com vista a impedir a sua expansão e violência em África, na Ucrânia e em qualquer outro sítio».

 

‘Abaixo a França, viva Putin’

Para além de acordos vantajosos, o Grupo também cumpre uma função geopolítica e política, explorando os ressentimentos populares em relação às intervenções de atores como a França ou a União Europeia, percecionadas como formas de ‘neocolonialismo’, e o sucessivo falhanço das iniciativas no âmbito da ONU.

Os acontecimentos políticos no Níger ilustram o progressivo redesenhar das alianças e equilíbrios geopolíticos na região. Após o golpe de Estado, a embaixada francesa em Niamei foi atacada. Nos protestos a favor da Junta Militar, havia quem agitasse bandeiras russas e quem segurasse cartazes onde se lia: «Abaixo a França, viva Putin» ou «Abaixo o imperialismo». 

Na região do Sahel, as Primaveras Árabes, e em particular a desintegração da Líbia, não trouxeram a democracia, mas antes substituíram contextos de autoritarismo estável por situações de instabilidade política, com consequências securitárias e humanitárias. 

Apesar do sucesso militar inicial no Mali, com a Operação Serval, a presença francesa na região não contribuiu para a estabilização. No ano passado, a França anunciou a sua retirada do país e o fim da Operação Barkhane. Este ano foi a vez da Nações Unidas, por decisão do Conselho de Segurança e após um ultimato do Governo do Mali, terminarem a missão de manutenção da paz no país. Estabelecida em 2013, e com um orçamento anual de 1,2 milhões de dólares e cerca de 15.000 tropas no chão, a MINUSMA falhou nos seus objetivos de apoio à estabilização política e manutenção da paz. 

O Grupo Wagner explora o ressentimento contra estas intervenções externas, sendo usado como instrumento, por Moscovo, para expandir a influência russa no continente. 

 

Consequências

Para o Ocidente, o Níger era visto como o último aliado-chave numa região volátil, onde grupos terroristas e de crime organizado convergem, tirando partido de um contexto de Estados frágeis, clivagens étnicas e religiosas, e fronteiras porosas. Num cenário em que aumentava a hostilidade em relação à presença francesa, europeia e da ONU na região, foi no Níger, onde a França e Estados Unidos têm bases militares, que se concentraram os comandos das operações de estabilização e antiterrorismo.

O golpe de Estado ameaça os interesses estratégicos da França, da UE e dos Estados Unidos na região. 

Sendo o sétimo maior produtor de urânio de acordo com a World Nuclear Association, o Níger tem um papel importante na estratégia energética francesa. 

Para além disso, enquanto país de origem e trânsito de fluxos migratórios, era um parceiro fundamental da UE na sua política de contenção da imigração. Confirmando-se o golpe de Estado, Bruxelas, como Washington, também será confrontada com um dilema, que reflete a contradição entre a imposição dos princípios da democracia liberal e a realidade política da região do Sahel. 

Para os Estados Unidos, uma reorientação da estratégia do Níger põe em causa os esforços antiterrorismo na região, e reforça uma dinâmica de Guerra Fria, que opõe os interesses de Moscovo aos interesses de um bloco ocidental, perante uma ONU incapaz e deslegitimada.

 

*Texto editado por M.R.