Por Teresa Nogueira Pinto*
Donald Trump sobreviveu a duas tentativas de impeachment. Mas, desde que abandonou a Casa Branca, o agora candidato tem enfrentado uma série de acusações.
Em março, foi acusado por um Grande Júri em Nova Iorque de violar as leis de financiamento de campanhas com um alegado suborno pago à atriz Stormy Daniels. Em junho, foi formalmente indiciado pela justiça federal por 40 crimes relacionados com a retenção de documentos classificados. Mas a acusação mais grave, e a que mais consequências políticas trará, foi tornada pública em Washington D.C, no passado dia 1 de agosto. A data da audiência preliminar deverá ser conhecida no dia 28 de agosto, cinco dias depois do primeiro debate entre os candidatos à nomeação republicana.
‘Defraudar os Estados Unidos’
A contestação, por Donald Trump e parte da sua base de apoio, dos resultados das eleições de novembro de 2020 culminaria com o ataque ao Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021, que ocorreu enquanto o Congresso validava os resultados e certificava a vitória de Joe Biden. Os acontecimentos foram objeto de investigação por uma Comissão bipartidária da Câmara dos Representantes, que apresentou um relatório final com 814 páginas onde concluía que «o motivo central do 6 de janeiro foi um homem, o ex-Presidente Donald Trump (…) nenhum desses eventos teriam acontecido se não fosse ele».
Dois anos e meio depois, Trump foi formalmente acusado por um Grande Júri de Washington D.C por quatro crimes relacionados com as eleições de 2020: conspiração para defraudar os Estados Unidos (prevendo-se uma pena até cinco anos de prisão), obstrução ou tentativa de obstrução de um procedimento oficial (pena até 20 anos de prisão) e tentativa de privar os cidadãos do direito ao voto (pena até 10 anos de prisão).
A acusação, apresentada pelo Departamento de Justiça e votada pelo Grande Júri, é, naturalmente, menos política do que as conclusões da comissão de inquérito da Casa dos Representantes, formada por democratas e republicanos never trumpers. No documento de 45 páginas que expõe a acusação, Jack Smith, procurador responsável pela investigação, reconhece o direito, protegido pela Primeira Emenda, do ex-Presidente a contestar os resultados e a alegar que houve fraude. Nesse sentido, a acusação assenta no pressuposto de que Trump, e uma parte do movimento MAGA, contestaram os resultados da eleição mesmo sabendo que a tinham perdido, e, por isso, representaram um risco para a democracia americana.
‘Perseguição de um adversário político’
Sem surpresa, Trump apresentou-se no tribunal de Washington D.C e declarou-se inocente. A defesa de Donald Trump deverá continuar a seguir a mesma linha. Por um lado, atribuir as acusações a um processo de politização da justiça, mediante o qual se aplicam dois pesos e duas medidas, alegando, por exemplo, que Hillary Clinton, Joe Biden e Mike Pence, estes últimos na qualidade de vice-presidentes, também estiveram envolvidos em incidentes relacionados com posse e gestão negligente de documentos classificados.
Face à mais recente acusação, Donald Trump insiste que se trata de uma tentativa de o impedir de ganhar as eleições do próximo ano. Depois de se apresentar no tribunal em Washington, voltava a afirmar: «Este é um dia muito triste para a América…isto é a perseguição de um adversário político». O ex-Presidente tentou sempre demarcar-se dos acontecimentos de 6 de janeiro no Capitólio, negando qualquer responsabilidade direta, e a sua equipe de defesa alega que o incitamento a uma marcha «pacífica» está protegido pela Primeira Emenda. Ainda antes da acusação ser conhecida, Donald Trump afirmava numa publicação na (sua) Truth Social: «Tenho o direito a contestar uma eleição que, estou absolutamente convencido, foi manipulada e roubada».
Provar este «absolutamente convencido» é o que, do ponto de vista da lei, será decisivo. É que, para condenar Donald Trump, não basta provar que ele contestou resultados que estavam corretos, sendo necessário provar, sem margem para dúvidas, que ele sabia que estavam corretos e, ainda assim, tentou ignorar votos legítimos e bloquear o reconhecimento dos resultados.
No domingo, Trump anunciou na sua rede social que iria exigir o afastamento da juíza responsável pelo caso: «Não é possível eu ter um julgamento justo com a juíza ‘atribuída’». A juíza atribuída, Tanya Chutkan, foi nomeada pelo ex-Presidente Obama e tem um historial de ditar sentenças mais pesadas do que os seus pares aos cidadãos considerados culpados nos eventos de 6 de janeiro, vendo a pena de prisão como fator de dissuasão. Em 2021, afirmava: «Todos os dias ouvimos sobre relatos de fações antidemocráticas de pessoas à procura de violência, ou numa ameaça potencial de violência em 2024…tem de ser claro que aqueles que tentarem derrubar o Governo de forma violenta, tentarem impedir a transição pacífica do poder…serão confrontados com uma punição absolutamente certa».
Dupla face
As atuais dinâmicas de judicialização da política e de politização da justiça, e as acusações que suscitam, acontecem nos dois lados da política americana.
A estratégia da Administração Biden tem sido a do silêncio. A estratégia visa, por um lado, evitar acusações de politização da justiça; por outro, assenta na ideia de que a agitação mediática que se montará em torno dos processos judiciais, que obrigarão Trump a despender recursos financeiros e de tempo, poderá favorecer eleitoralmente Joe Biden, desviando as atenções das suas próprias limitações.
Para além da sua idade e condição física, e de uma Bidenomics que tarda em convencer o eleitorado, a performance de Joe Biden, na campanha e nas urnas, pode ser comprometida pelas investigações que envolvem o seu filho, Hunter Biden, e que podem lançar suspeitas sobre a sua atuação enquanto vice-presidente.
Hunter Biden apresentou-se a uma Juíza em julho, depois de ser acusado de dois delitos fiscais e um delito relacionado com posse de arma. Também no mês passado, um documento do FBI divulgado pelo senador Chuck Grassley referia as declarações de uma fonte confidencial classificada como ‘altamente credível’ sobre um alegado esquema de suborno envolvendo o CEO da empresa ucraniana de gás Burisma, Hunter Biden (que fazia parte do conselho de administração da empresa) e Joe Biden. Os democratas acusaram Grassley de divulgar informações não confirmadas e sem contexto, com o objetivo de prejudicar um adversário político.
Também na Casa dos Representantes, os republicamos dirigem uma Comissão de Inquérito sobre os negócios de Hunter Biden. Numa audição, Devon Archer – ex-sócio de Hunter Biden – afirmou que o então vice-presidente esteve presente, pelo telefone ou pessoalmente, em pelo menos vinte reuniões de Hunter Biden com os seus parceiros internacionais, mas que nunca discutiu negócios e a sua participação limitava-se a ‘conversas casuais’, ‘frases de cortesia’ ou ‘comentários sobre o tempo’. Archer também afirmou que Hunter Biden sentia que devia dar aos seus empregadores «a ilusão de acesso ao seu Pai», acrescentando que foi essa a ideia da Burisma ao contratar Hunter Biden: «A sua capacidade para ajudar no palco geopolítico, mantê-los fora de sarilhos, de investigações, descongelar bens, descongelar (sem sucesso) vistos».
A Casa Branca tem ignorado as alegações contra Hunter Biden, mas Donald Trump tem-nas utilizado para tentar fundamentar as suas acusações contra um Departamento de Justiça que, de acordo com o ex-Presidente, atua segundo «dois pesos e duas medidas».
Consequências políticas
As acusações contra Donald Trump parecem não influenciar o eleitorado republicano, e o ex-Presidente continua a liderar as sondagens na corrida para a nomeação. Segundo o FiveThirtyEight, Trump lidera com 53.3 por cento (seguindo de Ron de Santis com 14.3 por cento e Viviek Ramaswamy com 6.7 por cento). E, numa sondagem recente apresentada pelo New York Times, o hipotético (e, por agora, mais provável) cenário de uma corrida entre Donald Trump e Joe Biden resultaria em empate técnico.
Apesar das sucessivas acusações, e com uma investigação ainda a decorrer sobre alegadas tentativas de subverter os resultados das eleições presidenciais de 2020 na Geórgia, não está em risco a elegibilidade do ex-Presidente. De acordo com a Constituição americana, que determina que qualquer cidadão com 35 anos ou mais que tenha residido por 14 anos no país pode ser candidato à presidência, nem as acusações nem mesmo uma eventual condenação põem em risco a corrida à nomeação, e depois à Casa Branca.
Os julgamentos do caso de suborno e dos documentos classificados deverão ter início na primavera de 2024, em plenas eleições primárias. Um grupo de democratas da Casa dos Representantes enviou uma carta ao Juiz Roslynn Mauskopf, responsável pela supervisão dos tribunais federais, pedindo que o julgamento fosse transmitido pela televisão: «Se queremos que o público aceite integralmente o resultado, é de vital importância que testemunhe, de forma tão direta quanto possível, como o julgamento é conduzido, a força das provas apresentadas e a credibilidade das testemunhas».
Mas mesmo antes de começarem, os julgamentos já condicionam a campanha, obrigando os candidatos a navegar um equilíbrio difícil de declarações cautelosas, conscientes da popularidade que Trump mantém.
Em reação à nova acusação, Mike Pence, ex-Vice-presidente e agora candidato à nomeação, voltou a demarcar-se do ex-Presidente: «No dia 6 de janeiro, o ex-Presidente Trump exigiu-me que eu escolhesse entre ele e a Constituição. Eu escolhi a Constituição, e assim o farei sempre». Ron de Santis também abandonou a ambiguidade e, em entrevista à NBCNews, quebrou em definitivo um dos dogmas de fé do movimento MAGA. Sendo-lhe pedida uma resposta definitiva sobre quem venceu as eleições de 2020, respondeu: «É claro que ele [Trump] perdeu. Joe Biden é o Presidente legítimo dos Estados Unidos». Viviek Ramaswamy, por sua vez, tem sido vocal no apoio a Trump, classificando a acusação como uma «caça às bruxas politicamente motivada para dividir o país» e prometendo que, se eleito, perdoará o ex-Presidente.
Pressupostos frágeis
As democracias liberais assentam num conjunto de pressupostos tão essenciais quanto frágeis: separação dos poderes; confiança nas instituições, e em regras do jogo que funcionam, são justas e iguais para todos.
Mas, nos últimos anos, a polarização política deu lugar a uma ideia de que derrotas e vitórias são absolutas, i.e., de que a vitória do adversário representa uma ameaça existencial para a própria democracia, entendida de forma cada vez mais diferente por republicanos e democratas. A desconfiança, visível, por exemplo, na perceção sobre a conduta dos meios de comunicação e plataformas de redes sociais, estende-se agora às instituições, num contexto em que disputas políticas se movem para o campo da justiça.
Mas se é possível criar meios de comunicação alternativos, não podem existir, em democracia, instituições alternativas ou duplos critérios de aplicação da lei. A sucessão de alegações e contra-alegações, de escândalos e casos envolvendo Donald Trump, mas também o filho do Presidente Joe Biden; a sua judicialização, politização e mediatização, e a complexidade que lhes está associada representam um teste difícil para a justiça americana, em tempos que são, também, de hiperpolitização.
*Texto editado por S.P.P.