A morte da imprevisibilidade

Com os telemóveis combinam-se encontros que são acertados 30 vezes antes de acontecerem e confirmados mais algumas a caminho do local.

Todos nós, antes de surgirem os telemóveis, combinávamos encontros com antecedência e podíamos ficar à espera indefinidamente sem ter qualquer pista do tempo que a outra pessoa iria demorar. Assim, quem chegasse primeiro sujeitava-se a esperar pelo outro sem saber se ele viria, se teria tido algum imprevisto ou se simplesmente se tinha esquecido. Quando chegávamos atrasados a incerteza era ainda maior: será que já ali tinha estado e fora embora? Até podíamos estar enganados no local ou ter entendido a hora errada e não havia nada a fazer. Só no próximo encontro ou pelo telefone chegaríamos a essa conclusão. Esperava-se, simplesmente, enquanto se ia olhando à volta e acompanhando o tempo a passar no relógio.

Ao pé do Instituto Superior Técnico havia um prédio que teve durante anos na fachada em letras garrafais a mensagem: ‘Tinita, estamos no Bora-Bora (um bar na Avenida Almirante Reis)!’. Provavelmente deixada por um grupo de jovens que se cansou de esperar pela Tinita e a única forma que encontrou para a avisar foi deixar-lhe uma mensagem tão exuberante que seria impossível passar-lhe despercebida.

 

Com os telemóveis combinam-se encontros que são acertados 30 vezes antes de acontecerem e confirmados mais algumas a caminho do local: ‘Estou a chegar’, ‘estou atrasado’, ‘demoro mais 5 minutos’. Conseguimos saber com precisão onde está a outra pessoa e quanto tempo ainda iremos aguardar. Há até quem partilhe a localização para que seja acompanhado em tempo real. E o primeiro a chegar puxa logo do telemóvel e escreve: ‘Já cá estou!’. Se do outro lado não há resposta é caso para ficar aflito. O que é que aconteceu? Por que não responde? Será que não vem? Se não atender o telefone então aí é o pânico. Como aguentar a incerteza?

 

Os telemóveis matam toda a surpresa, a dúvida. Tornam tudo certo e previsível. E criam também, por isso, uma enorme dependência.

 

Esta nova geração nunca saberá o que é esperar na incerteza. Fica aflita se sai para a rua sem telemóvel. Sente-se incompleta.

O mesmo acontece em variadíssimas situações.

E já ninguém espera e desespera, todos aproveitam para fazer qualquer coisa útil ou inútil no telemóvel enquanto aguardam.

Enfim, a companhia do telemóvel permite sem dúvida uma infinidade de coisas que nos facilitam imenso a vida. Mas além de todas as vantagens também deixa pouco espaço para algumas surpresas e vivências que nasciam da ignorância, do acaso ou do desconhecido. E às vezes consome-nos grande parte do dia (basta ir ver às definições quanto tempo o usámos para ficarmos surpreendidos). Antigamente andávamos sozinhos e desarmados, não sabíamos tão bem com o que contar e não tínhamos toda a informação na ponta do dedo, mas sabíamos esperar, éramos mais pacientes e persistentes, éramos menos preguiçosos e também éramos mais livres e independentes. 

 

Psicóloga na ClinicaLab Rita de Botton