Mar. “Mesmo que me quisessem levar, eu não queria ir!”

Uns porque não tinham posses ou porque o trabalho não lhes permitia ter momentos de lazer, outros por medo, são vários os idosos que, em Portugal, nunca viram o mar. Só na Casa do Povo de Alagoa, em Portalegre, há seis.

Passo e amo e ardo. Água? Brisa? Luz? Não sei. E tenho pressa: levo comigo uma criança que nunca viu o mar”, escreveu Eugénio de Andrade no terceiro volume da coleção Obras de Eugénio de Andrade que reúne os livros Coração do Dia, publicado pela primeira vez em 1958, e Mar de Setembro, de 1961. 
Há quem o veja como um bálsamo, quem faça questão de morar perto dele por com ele sonhar, conversar, meditar. O mar é a salvação metafórica de muitos, a realidade de outros, as férias de outros tantos. No entanto, por mais que seja difícil de acreditar, por sermos “um jardim à beira mar plantado” –  como escreveu Tomás Ribeiro –, ainda são inúmeros aqueles que nunca presenciaram a sua magnitude, que nunca despiram o pé para o sentir.  

Trabalho árduo  “Eu sou o mais velho que aqui está”, revela Possidónio Gonçalves, de 98 anos, um dos utentes d’ A Casa do Povo de Alagoa, em Portalegre. Tal como as suas companheiras do lar, começou a trabalhar muito novo no campo. “Éramos seis irmãos e eu era o mais  velho! Tinha de ajudar. Comecei a trabalhar aos 9 anos”, lembra. “Eu nunca tive posses para ir ver o mar. O meu pai só tinha posses para me meter a trabalhar!”, lamenta, acrescentando que nunca ninguém o “levou”. “É muito longe, nunca pude passear”, acrescentou. “Deixa-me triste nunca o ter visto, mas há tantas coisas que não vi”, continua. “Eu só tive vida para trabalhar”, reforçou. Possidónio Gonçalves imagina-o “grandioso”: “É muita água junta!”, acredita. Interrogado sobre a vontade de molhar o pé na água do mar, em tom de brincadeira, o senhor de 98 anos afirma que lavava os pés todos os dias na bacia, por isso, não precisava de ir molhar os pés na água do mar. “Já não tenho idade para ir. Já só quero descansar”, admite. 
“Trabalhei a vida toda para uma família. Era doméstica. Tenho ideia que cheguei a ver o mar de longe, uma vez apenas. Nunca consegui aproximar-me”, conta, por sua vez, Maria Miranda Saboeiro, 88 anos. “Fui com a minha filha a Fátima e parámos para almoçar na Nazaré. Lembro-me de o ver muito ao longe, estavam lá muitas pessoas… Mas é como se nunca o tivesse visto”, acrescenta. “Mas também não é uma coisa que me deixe triste. Como nunca estive habituada, não me faz diferença nenhuma!”, admite, acrescentando que nunca se jogaria para a água. “Eu? Jogar-me para a água? Nunca! Isso fazem os peixes”, brinca a senhora, às gargalhadas. “Sou muito medrosa. Eu agora quero é descansar”, afirma, tal como o senhor Possidónio. 

Medo do mar “Não me recordo da minha idade”, diz com uma voz trémula ao telefone a Dona Glória Viegas, de 88 anos. “Mas lembro-me que passei a minha vida a trabalhar no campo. Ceifar, semear, arrancar mato… Tudo do pior. De pequenina, porque eu nem sei ler, nem sei escrever, nem sei nada”, lamenta. Tinha que ir para o campo com a mãe porque a família tinha de comer e não havia ninguém que os ajudasse. “Eu acho que uma vez vi o mar em Lisboa”, afirmou, referindo-se ao rio Tejo. “Ai a minha cabeça! Não era o mar, era o rio. Eu nunca tive dinheiro para ir ver o mar, não tinha ninguém que me levasse”, revela. “Se o visse, acho que ia gostar. Mas, se não o vir, também é como o outro”, acrescenta, admitindo ter “muito medo”. “O mar é muito grande, muito perigoso. Acho que nunca me meteria dentro da água”, acredita. 
“Eu sou mais nova!”, afirma orgulhosa Maria Sabina Carrilho, de 74 anos. “Trabalhei no campo, nem gostava de ir para a casa das senhoras. Trabalhava para uma empresa que plantava eucaliptos”, conta, frisando que “andou três anos à escola”. “Eu nunca vi o mar porque ele está muito longe da gente. Nós estamos em Portalegre, o mar está lá para Lisboa”, explica. O seu marido esteve no mar durante 35 dias: “Alguma vez ele ia ter saudades de lá regressar?”, interrogou. “Ele foi para Moçambique com a tropa toda, durante a guerra colonial. Depois disso, nunca mais quis ver o mar. Nem eu fiz questão!”, admite. “O mar é muita água, tem muito peixe, muita coisa. É muito grande, deve ser muito frio”, acredita. Interrogada sobre se é uma coisa que ainda deseja realizar, Maria Sabina admite: “Agora já nem penso muito nisso”.

Tal como os seus companheiros, Maria Rosa Nicolau trabalhou muito no campo. “Ainda me meti nas costuras”, lembra a senhora de 91 anos. “Era nova ainda. Tinha 12 anos quando comecei a trabalhar”, continuou. “Eu acho que uma vez vi o mar em Lisboa”, conta, confundindo também o Atlântico com o rio Tejo. “Mas também o que é que eu vou lá fazer? Não vou fazer nada ao mar!”, diz confusa. “Já na época eu tinha medo. Não sei nadar!”, revela. “Quando vejo as pessoas dentro de água na televisão, até me arrepio”, acrescentou. Quando veio até Lisboa, recorda-se também de ver um homem dentro do rio. “Ele estava todo tapado por água, com os braços no ar. Eu estava aflita a julgar que aquele senhor se estava a afogar. Mas não… Ele estava na brincadeira”, afirma. “Para mim é uma aflição. Se calhar gostava de o ver, mas nunca ia lá para dentro”, garante. 
“Eu fui auxiliar de ação educativa nas escolas!”, afirma, por fim, Beatriz Garção. Interrogada sobre o porquê de nunca ter visto o mar, a senhora de 78 anos admite que, tal como as amigas, “tem medo”. “Deus me livre! Até tenho medo de o ver ao longe! Não quero! Gosto de ver as ondas na televisão, mas ao vivo, nunca!”, revela. “Eu sou muito tímida e deixou-me muito triste aquele acidente com os estudantes há uns anos atrás”, revela, referindo-se à tragédia do Meco. “Penso muitas vezes neles e nas famílias”, frisou. “Mesmo que me quisessem levar, eu não queria ir!”, garante. 

Uma atividade de elite Segundo Bruno Reis, sociólogo e professor na Universidade Autónoma de Lisboa, a expressão “ver o mar” remete no imaginário português ao “ir a banhos”, momento diretamente associado à pausa estival, ao ir de férias. “Mas, se pensarmos que no início do século XX ainda o conceito não fazia sentido na gramática social dos portugueses, pois ‘féria’ significava ter um salário, ao qual estaria associado o gozo de um tempo de descanso (e mais tarde remunerado)”, reflete, acrescentando que foi um longo recorrido até a massificação desta prática. “Se pensarmos que em 1911 (segundo os Censos), 60% da população era ruralizada e trabalhava na precariedade do pagamento ‘à jorna’”… Os restantes habitantes residiam em zonas urbanas, ocupando postos na indústria e serviços, mas que nas vésperas da 1ª República penavam por conseguir um dia de descanso”, continuou. Por isso, o cenário não era propriamente animador.  “O lazer, o descanso e o ócio eram atributos das classes abastadas. A lei que confere o direito ao tempo de descanso (remunerado) data de 1937 em Portugal, mas apenas com a chegada da democracia esse direito se generalizou e foi cumprido”, explica. 

Maria Antónia Pires de Almeida, investigadora auxiliar da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e investigadora do Centro de Investigação em Ciência Política, tem estudado o interior de Portugal, primeiro do ponto de vista da História e agora no da Ciência Política. “Descrevi a frequência das praias por parte das elites alentejanas no meu livro 1997. Família e Poder no Alentejo (Elites de Avis: 1886 – 1941), Lisboa, Edições Colibri”, explica a especialista, contando que, de facto, esta era “uma atividade de elite até meados do século XX”. “Para o interior foi até mais tarde”, acrescentou. 
Segundo a investigadora, depois do 25 de abril de 1974 houve uma “democratização da frequência das praias”, mesmo para as pessoas do interior, com a participação das câmaras e das instituições locais. “Entrevistei muitas pessoas de vários níveis sociais de uma localidade alentejana que me contaram que passaram a ir pelo menos uns dias por ano à praia com excursões organizadas pela câmara, ou pela misericórdia local, ou por outras instituições ou clubes locais”, lembra.  
No que diz respeito aos alentejanos, sempre verificou um interesse maior das mulheres e das crianças, ficando o homem em casa a trabalhar nas terras. “As justificações para as estadias na praia prendiam-se com a temperatura mais baixa junto ao mar (os alentejanos sempre preferiram ir para as praias do norte, Figueira da Foz, Nazaré, para fugir ao calor do verão alentejano), a saúde e o interesse nas propriedades do mar e do sol para o crescimento das crianças, e as atrações de lazer que essas praias proporcionavam”, acredita. 
Para uma abordagem das pessoas do norte, de acordo com Maria Antónia Pires de Almeida, a biografia de António Variações, escrita por Manuela Gonzaga, conta um episódio engraçado sobre uma das irmãs dele que não andava e o médico receitou levá-la à praia: “A mãe lá foi para a Figueira da Foz e a menina começou a andar, mas a mãe atribuiu o milagre às rezas, mais que ao efeito do mar e do sol”.