João Cerqueira
As pessoas dividem-se em dois tipos: os espertos e os outros. Os meus pais pertenciam à categoria dos outros. Mataram-se a trabalhar durante mais de quarenta anos e acabaram despedidos com uma indemnização ridícula. Agora, velhos e doentes, sobrevivem com pensões que não chegam para comprar os medicamentos e manter a casa aquecida. Eles haviam sido honestos, trabalhadores e tudo o mais o que a sociedade esperava deles, e vejam o resultado: acabaram na miséria. Os meus pais tinham todas as qualidades do mundo, menos uma, a mais importante de todas: ser esperto. Eles nunca haviam sido espertos porque nunca haviam compreendido que viviam num mundo sem direitos, uma selva onde um dia seriam devorados.
É por isso que eu segui outro caminho para não acabar da mesma maneira. O caminho dos que criam as próprias regras e sabem aproveitar as oportunidades que a vida oferece. E a melhor maneira de ganharmos dinheiro e garantirmos o futuro é entrarmos no negócio das drogas. Essa mesma sociedade que abandonou os meus pais considera que as drogas são ilegais, enquanto permite que as pessoas se matem com tabaco e álcool. Não podes comprar droga, mas podes comprar uma arma. Eu não posso vender drogas, mas a Rússia e a América podem invadir países.
Com que direito?
No entanto, é preciso ser muito esperto para não acabar na cadeia.
*
Conheço a Júlia desde o liceu e sempre me pareceu que ela também iria seguir um caminho diferente daquele que os seus pais haviam planeado. Infelizmente, a Júlia nunca foi muito esperta, nem nunca percebeu como o mundo funcionava. Escolheu por isso o caminho que todas as mulheres com poucos miolos e mamas grandes escolhem quando querem ganhar dinheiro: tornou-se puta. Não uma puta de rua, claro, mas uma daquelas que colocam anúncios e esperam que os clientes lhes telefonem. Como já nos conhecíamos, foi fácil estabelecermos uma relação: ela precisava dos meus comprimidos para se esquecer do que fazia, eu precisava do seu corpo porque nunca tive sorte com as mulheres. Droga por sexo. Encontrávamo-nos na minha casa e estava tudo a correr bem: pouca conversa, muita acção e, no fim, três comprimidos à sua escolha.
O problema foi o guarda Biggs.
Há vários meses que ele andava de olho em mim, mas nunca fora capaz de me apanhar em flagrante. Eu era mais esperto do que ele. Porém, uma noite, um dos meus clientes tramou-me. Quando fui ter com ele ao local combinado, estava lá o Biggs. Os botões dourados da farda azul brilhavam à luz dos candeeiros. No seu rosto balofo havia um sorriso cínico. De repente, coloca-me uma algema no pulso. Naquele momento eu era uma raposa com a pata presa numa armadilha. Porém, o caçador não disparou; não era a minha pele que ele queria. Em vez de me levar para a esquadra, parou o carro à beira do rio e mostrou que também era esperto.
– Escuta meu patife, vou dar-te uma possibilidade de não ires preso: convences aquela puta que anda contigo a dar-me umas borlas e eu deixo-te em paz. Senão, prendo-vos aos dois. Tens dois dias.
Soltou-me e pôs-me fora do carro.
A proposta fazia sentido para qualquer homem, mas, do ponto de vista feminino, talvez fosse considerada um abuso. No entanto, como a Júlia era estúpida, não seria difícil persuadi-la a aceitá-la. Afinal, quem sabe se ela não viria a gostar de ser esfolada pelo Biggs?
No dia seguinte, liguei-lhe e pedi-lhe para se encontrar comigo num café. Estava um dia de chuva e ela saiu de casa contrariada. Quando chegou, com as calças e os sapatos molhados, vinha com o rosto mais sombrio do que uma nuvem negra. Os seus olhos azuis faiscavam. Não pusera o perfume habitual. Tentei dar-lhe um beijo, mas ela voltou a face e atirou com a bolsa para a mesa. O olhar que a dona do café nos lançou fez-me pensar que ela poderia ser parente do Biggs.
Então, sorrindo, comecei a preparar a Júlia para aceitar a proposta.
– Temos um problema: ontem fui apanhado pela polícia.
– Temos um problema? E o que tenho eu a ver com isso?
– O polícia fez-me uma proposta…
– Uma proposta? Qual proposta?
– É uma coisa engraçada, até te vais rir, mas acho que não há alternativa…
– Queres contar-me de uma vez por que me fizeste sair de casa num dia como este?
– Bom, é assim: ele deixa-nos em paz se eu te convencer a ires com ele…
– Ir com ele?
– Sim, para a cama…
– O quê? Achas que eu sou alguma puta?
– Bem…
Durante alguns segundos ficamos os dois calados. Eu a coçar o queixo e ela com a mão na testa. A dona do café continuava a vigiar-nos – era, no mínimo, prima do Biggs. Por fim, a Júlia ajeitou o cabelo e acabou por falar.
– Está bem, eu sei qual é a minha profissão, mas não vendo o corpo de qualquer maneira. Eu tenho os meus direitos. Eu tenho o meu orgulho. Eu escolho os meus clientes.
– Claro…
– Então, a resposta é não! Percebeste? Não!
Fiquei de novo calado por um bocado, a tamborilar com os dedos na mesa.
– Olha, nós temos de ser espertos. Ele tem o poder de nos meter na cadeia, tu tens o poder de impedir que ele nos meta na cadeia, e eu tenho o poder de nos fazer aos três felizes. É um bom negócio para todos.
Ela recomeçou a mexer no cabelo com o olhar perdido na chuva. Mordia os lábios grossos como se quisesse travar as palavras.
– Então? – perguntei.
– Quero o dobro dos comprimidos.
– Ei, estás a ficar demasiado esperta.
– É pegar ou largar.
– Está bem, o dobro.
– E mais uma coisa: diz a esse polícia que não há jogos com algemas e cassetetes. Percebido?
*
A minha relação com a Júlia nunca mais foi a mesma depois de ela começar a deitar-se com o guarda Biggs. O contacto íntimo com a polícia produziu uma alteração na sua forma de ver o mundo. Não se tornou, porém, mais honesta ou mais trabalhadora. Percebeu que poderia não ter muitos direitos, mas tinha um poder enorme.
Um dia, ela telefonou-me e marcou-me um encontro no mesmo café. Estava a chover e cheguei lá todo molhado. Mal abri a porta, a dona do café resmungou algo – seria irmã do Biggs?
A Júlia esperava-me sorridente, os seus olhos azuis eram meigos. Tinha um perfume novo.
– Olha, temos um problema.
– Um problema? Qual problema?
– Eu fiz uma proposta ao polícia.
– De que estás a falar?
– Como percebi que ele gosta de mim, pedi-lhe que me protegesse.
– Protegesse? De quem?
– De ti, de quem haveria de ser.
– Queres explicar-me de uma vez o que se está a passar?
– É uma coisa original, até te vais rir.
– Contas ou não contas? – e dei um murro na mesa.
– É assim: a partir de agora não me deito mais contigo, mas continuas na mesma a dar-me as pastilhas, senão o Biggs prende-te.