Frequentou a Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde estamos e, posteriormente, licenciou-se em Teatro/Actores na Escola Superior de Teatro e Cinema. O que é que fica dos anos passados dentro destas paredes?
Ficam todos os exercícios que fiz, todos os colegas que conheci e que se tornaram amigos, ficam os professores, o contacto com o Carlos Avilez e todo o crescimento de um jovem que já sabia desde o primeiro momento que era por aqui que queria caminhar, mas que não se conhecia, naturalmente. Entrei nesta escola com 15 anos. Sabia que era o teatro que me movia. Os dias eram intensos… Avisaram-nos logo nas audições. Era um curso com uma carga horária muito extensa. Tínhamos interpretação, corpo, voz e teóricas. Há pouco, ao passar num dos corredores, olhei para os quadros com fotografias de professores nossos que entretanto já partiram…
O que é que aprendeu nesta altura com o mestre Carlos Avilez? Que todos os géneros teatrais importam?
Eu aprendi muita coisa com o Carlos Avilez. Podíamos ficar aqui até amanhã! (risos) Mas, é engraçado, porque naturalmente cada escola tem um bocadinho a sua linha, a sua estética, a sua forma de trabalhar os alunos e o teatro… Esta não é exceção. No entanto, quem conhece o trabalho do Carlos pode associá-lo a um tipo específico de teatro. Quando isso acontece, acredito eu, achamos que a pessoa pode ser um bocadinho preconceituosa com outros estilos, géneros teatrais. O Carlos é o oposto! É um homem do teatro, que vê o ator em cena e ponto. Independentemente daquilo que o ator esteja a fazer… Algo mais cómico, mais trágico, mais intenso, com muito texto, com pouco texto. Isso para mim é muito interessante.
E porquê a representação? Como surgiu esta paixão na sua vida?
Nunca sei bem responder a isto… (risos) Desde muito novo que gostava de replicar tudo aquilo que via na televisão. Achava que era muito interessante que aquelas pessoas, que eram como eu, estivessem a vestir a pele de outra pessoa com costumes diferentes, formas de estar diferentes, de falar, pensar, etc. Isso interessou-me desde miúdo. Quão diferente de mim próprio consigo ser? Obviamente que ao longo dos anos essa vontade de vestir outras peles, conhecer outras pessoas, aumentaram. E foi isso que aprendi nesta escola. Foi isso que nos ensinaram… Despirmo-nos de tudo o que temos cá dentro, os complexos, preconceitos, traumas de coisas que temos de resolver bem, para conseguirmos receber tudo o que acarreta um personagem.
A sua mãe sempre o apoiou neste sonho… Dizia numa entrevista que foi ela que lhe deu a conhecer esta escola… Esse apoio deve ter sido fundamental.
Eu penso nisso e cada vez me é mais especial esse momento. Lembro-me como se fosse hoje. Estava numa paragem de autocarro, tinha acabado de sair da minha escola secundária em Domingos de Rana e a minha mãe ligou-me. Pensei que me ia perguntar porque é que eu ainda não tinha chegado a casa ou pedir-me para descongelar qualquer coisa para o jantar… (risos) E ela diz-me: «André, lembras-te daquele papel que tinhas da Escola de Teatro em Cascais? Tu queres ir para essa escola?». Eu tinha acabado de decidir que queria ir para Línguas e Humanidades… Não sabia ainda bem o que queria, mas fazia-me sentido ir por aí. «Tu gostas tanto de teatro, porque é que não vais para uma escola de teatro?», perguntou-me. Na minha cabeça eu pensava: «Então e depois?». Acabei por vir e as inscrições estavam mesmo a fechar. Não sei mesmo se não abriram uma exceção. A partir daí, foi toda uma descoberta sobre a arte, sobre o teatro, sobre o estar na vida!
Sabe praticar karaté, natação e futebol. Durante o seu crescimento, o desporto foi, por isso, muito importante. Nunca pensou em enveredar por aí?
(risos) Ainda hoje! Eu espero ser ator a minha vida toda, mas sou muito ligado ao desporto. Porque sou muito ligado ao corpo, à natureza e acho que é uma coisa imprescindível para o ser humano, para o seu crescimento e a sua evolução! O desporto para mim é isso. E sou um fervoroso adepto de futebol, acompanho o meu Benfica… Por isso, sempre pensei em seguir a área. Gosto de jogos de estratégia, de treinos desportivos, gosto do jogo… O futebol tem isso: há uma equipa, tem de se preparar física e mentalmente… Como vamos abordar o jogo? Como é que joga a equipa adversária? O mesmo no karaté… A que tipo de competição é que eu vou? Quem é que eu vou encontrar? Que júris é que estão lá? Acho muito interessante essa cena de explorar estratégias para ganhar um jogo.
O corpo também é o instrumento de trabalho do ator, por isso calculo que isso tenha influenciado o seu trabalho na representação…
Claro que sim! Foi por isso que eu também continuei sempre a fazer desporto. Eu tenho colegas meus que antes de estudarem teatro, estiveram anos em escolas de dança e são atores com uma corporalidade muito forte. É muito especial a maneira como abordam os personagens. Têm uma forma muito característica. Eu sou da opinião que quanto mais conseguirmos explorar o nosso corpo, a nossa mente, a nossa consciência, mais crescemos enquanto seres humanos e profissionais, neste caso no teatro e na arte.
Numa entrevista ao podcast Pessoas Humanas disse que o karaté é um desporto de defesa e que o André se considera uma pessoa bastante defensiva. O que é que isso significa?
(risos) Eu disse que era uma pessoa um bocadinho defensiva porque eu estou a crescer numa altura de alguns extremos. De preto e branco, onde infelizmente as pessoas estão a desaprender um bocadinho o diálogo. Há um bocadinho falta de empatia, falta de escuta… As pessoas têm muita tendência em quererem levar a delas avante. «A minha opinião é que é importante! Se não partilhares a mesma opinião do que eu é porque estás contra mim». Não vejo de todo as coisas assim, acho que é por isso que digo que sou um bocadinho defensivo. No karaté nós aprendemos a defender-nos, a atacar, mas não é para usar numa perspetiva de ataque. E não era para usar na escola, claro! (risos)
Também defende que, às vezes, ‘não devemos dizer tudo o que pensamos’. Devido à visibilidade, sente que os artistas devem ser mais resguardados no que toca às suas ideologias? Pode ser perigoso ter uma voz demasiado ativa?
Eu acho que os artistas, como qualquer outra pessoa, não se devem resguardar no que toca às suas opiniões, convicções, devem aprender é a dialogar melhor. Se as coisas forem ditas de uma forma respeitosa , educada, civilizada e com consciência que do outro lado também estão outros seres humanos, com outros sentimentos, podemos verbalizar tudo o que sentimos. Acho sim que as pessoas que têm alguma notoriedade e reconhecimento, têm também uma responsabilidade diferente sobre aquilo que dizem! É importante já que estão nesta posição que digam aquilo que as vozes menos ouvidas não conseguem dizer por muito que gritem.
Em 2021 o seu nome saltou para a ribalta como protagonista de uma Revista no Teatro Maria Vitória. Antes disso, nunca tinha visto uma Revista. Acha que ainda existe algum preconceito ou desvalorização relativamente a este género teatral?
Existe! Há esse preconceito… Ainda há um grupo de artistas, de atores, de pessoas que gostam de meter as coisas em «caixinhas». Vai um bocado contra aquilo que é o objetivo da arte e da cultura… Nesse sentido, devo dizer que foi muito importante ter feito revista no Teatro Maria Vitória, porque percebi que teatro de revista tem muito teatro. Eu também tinha esse preconceito. Muita gente defende que este género teatral tem pouco de teatro, da essência do teatro. Não é verdade. Eu já vi atores fazerem um espetáculo de teatro musical e eu acreditei muito mais neles do que acreditei em alguns atores a dizerem o texto em monólogos. Isto para dizer que não está na forma estética, está na forma como se faz. Nós temos exemplos disso: o José Raposo que faz teatro, teatro musical, televisão. O Diogo Infante que para além de ser ator, é encenador, diretor artístico e abriu a sua época no Teatro da Trindade com o ‘Chicago’, um musical.
Faz teatro, televisão, cinema. Qual a principal diferença que sente nas gravações? O que é que o faz mais feliz?
Trabalhar! Estar a trabalhar já nos deixa felizes, porque isto é um trabalho de grande ansiedade, grande incerteza, grande instabilidade, é muito desgastante e doloroso emocionalmente. Por isso, o que me faz feliz é estar a trabalhar, seja com câmaras, seja nas tábuas. Mas costumo dizer que o teatro é muito especial para mim…O trabalho do ator, quer esteja ele numa novela, num filme, num espetáculo, numa série, numa dobragem, é encontrar verdade no que está a dizer! A partir do momento em que fazemos esse percurso, há dois caminhos diferentes, porque com uma câmara nós temos um corta, podemos ajustar, alterar, é muito desgastante, são muitas horas, muitas repetições. Enquanto no teatro nós temos um espetáculo de 2 horas ou 4 horas, como eu já tive, e sabemos que temos uma linha desenhada e que a uma hora e meia do espetáculo o personagem tem um pico de uma emoção, por exemplo. Temos um quadro desenhado e vamos construindo essa energia, desde o aquecimento. É quase como um jogo de futebol. O jogador aquece, prepara-se mentalmente, equipa-se, joga e dá tudo o que tem, acaba e recupera. A filmar, podem chegar até 12 ou 14 horas e, por mais que haja esse processo de construção, de repente eu estou a filmar uma cena onde estou no pico de uma emoção e ‘corta’, porque estão nuvens, o sol desapareceu, estamos perto do almoço… E quando lá regressar, eu tenho de estar naquele estado de novo, em que estive há duas horas. É difícil fazer esse trabalho, é desgastante.
Acredito que nas gravações da série ‘Rabo de Peixe’ tenham vivido muitos momentos intensos.
Houve um dia muito intenso, quando fizemos a sequência final no hotel abandonado. A minha personagem e o Eduardo (interpretado pelo ator José Condessa) estão a negociar com o italiano, eu levo um tiro na mão, andamos a fugir… Foi mesmo muito intenso. Na primeira cena que filmei nesse dia tinha de estar no estado de alguém que tinha sido torturado a noite toda, altamente explorado mentalmente. O Carlinhos (interpretado por André Leitão) acredita que vai morrer naquele dia. Eram 9 da manhã e eu tive de manter essa energia até ao fim das gravações.
Antes desta série que trouxe um maior reconhecimento do seu trabalho, já tinha pisado muitos palcos, feito séries, filmes. No entanto, sempre com alguma instabilidade no futuro. É gritante a falta de apoios que existem na Cultura. Como lida com a falta de trabalho?
Temos de nos desdobrar, metermo-nos a fazer outros trabalhos, todos eles dignos como é óbvio. Mas é muito duro. Acho que há momentos da nossa vida que é mesmo: «Salve-se quem puder». Tive momentos na minha em que estava numa bolha de frustração. Aquele sentimento de impotência, sabes? Ouves: «Se tu trabalhares chegas lá!». Não é bem assim! Se assim fosse, todos os atores em Portugal tinham trabalho. Sou um sortudo. Felizmente tenho conseguido ter trabalho, tenho trabalhado com grandes mestres, grandes artistas. Isto é um problema estrutural e muito antigo que tem a ver com a falta de orçamento para a cultura. E não só… Falta de orçamento e falta de credibilidade. Nós só apostamos naquilo em que acreditamos, não é? Se o Governo não aposta na Cultura é porque não acredita nela e isso é muito estranho.
Já revelou que, no momento em que surgiu a oportunidade de casting para a série da Netflix, estava naquele que foi, até agora, o momento mais frágil da sua vida… Sente que isso foi um sinal do Universo para não deixar a carreira de ator?
Sou muito ligado ao Universo e penso muito sobre isto, sobre estas situações. É de uma forma qb espiritual, mas muito mais concreta, científica. Não acredito em grandes coisas para além daquilo que é a ciência física e quântica. Portanto, acho que tudo aquilo que nós deitamos cá para fora do ponto de vista energético, o que verbalizamos, as nossas ações, têm repercussões nas outras pessoas, no espaço, no lugar… São as tais peças que se vão juntando. É uma cadeia. Nessa altura, senti que era a vida a brincar um bocado comigo. Nunca imaginei ter a oportunidade e a sorte de fazer uma série para uma plataforma como a Netflix. Muito menos com o personagem que tive. Muito menos com o sucesso que a série teve. Muito menos com as pessoas com quem eu trabalhei. É clichê, mas eu estou a viver um autêntico sonho. É tudo tão bom. Não tenho forma de verbalizar o quão grato estou. Claro que também tenho mérito e trabalhei para isso, mas muita gente o faz e mesmo assim não consegue. Estava no momento mais frágil da minha vida e ter conseguido entrar neste projeto foi uma prova de confiança para mim mesmo.
Foi para o casting com as expectativas baixas?
Eu saí do último casting e mandei um áudio ao meu agente a dizer: «Olha, foi bom, acho que me correu bem, senti-me bem, mas tenho mesmo a certeza que não vou ficar. Não há problema nenhum! Já foi bom chegar aqui. O Augusto Fraga viu o meu trabalho».
Mas porquê?
Se eu até aos 24 anos nunca tinha sido uma aposta nas novelas, num grande espetáculo de teatro com uma grande bilheteira, porquê agora? Claro que para o Carlos Avilez, para a Fernanda Lapa, eu fui uma grande aposta e esses são os que realmente importam, mas nunca me foi dada a oportunidade de fazer uma personagem com um trabalho mais profundo… Ia agora ser protagonista numa série da Netflix? Do ponto de vista da pirâmide teórica que existe, das agências que têm mais influência e que estão mais perto das agendas de casting, que estão mais perto dos atores com maior visibilidade, etc., eu nunca seria a escolha óbvia.
Como foi cada uma das fases de castings?
Começou com uma selftape como se faz muito agora…Eles mandam-nos o texto, neste caso, textos mesmo da série, duas cenas muito diferentes, uma muito mais intensa e outra mais descontraída. Numa delas eu já tinha de estar a tocar piano e a cantar. Fiz. Depois, queriam ver-me pessoalmente. Fiz as mesmas cenas, toquei e cantei ao vivo. Não havia cortes e refazes. Já com uns inputs do realizador. Isso também dá para perceber a forma como trabalho o ator, a forma como ele recebe as informações… Seguiram-se outros castings presenciais, fui passando sempre, até que fomos para os castings de química, em que só estavam três ou quatro atores para cada personagem. Eles queriam ver a química entre nós.
Não sabiam eles que o José Condessa, a Helena Caldeira e o Rodrigo Tomás estudaram consigo e já eram amigos…
Exatamente! Fomos rodando… Mas o casting começou precisamente com eles e com a Kelly (Bailey), claro. Eles perceberam que nós tínhamos uma química muito forte. Era um dos ingredientes mais importantes. Era importante que este grupo fosse muito amigo, muito cúmplice. Claro que isso se constrói, mas já havendo essa camada, foi brutal.
Quando é que percebeu a dimensão que as coisas poderiam tomar?
Do ponto de vista teórico, eu sabia que estava a fazer casting para a maior plataforma de streaming do mundo, por isso, não era difícil perceber qual era… Mas lá está, por ser português, por ter a experiência de viver sobre a arte em Portugal, ter consciência da falta de crença que existe nos profissionais portugueses, não imaginei que o projeto tivesse o sucesso que teve. Nunca imaginei! Nem eu nem ninguém! Gosto sempre de ver as coisas o máximo possível perto da realidade. Nós tínhamos de fazê-la bem e o público tinha de se agarrar à série. Depois de a terminarmos eu percebi que a tínhamos feito com muito rigor, com muita exigência, muita preparação. Foi dos trabalhos mais intensos que tive na minha vida e ainda bem que assim o é. Houve orçamento para isso!
Juntaram-se todos os ingredientes para o sucesso…
Sim! A série tem um ritmo interessante, tem personagens fantásticas, o argumento é incrível, a fotografia fabulosa, os atores maravilhosos… Uma mistura de gerações. Que bombom!
E sentia-se pronto para o mediatismo? Já o começou a sentir?
Já! (risos) Vou confessar que, quando era mais novo e mais inconsciente, sempre achei que ia lidar bem com o mediatismo, com o «ser famoso». Até realmente a coisa acontecer e eu me sentir muito mais observado, no centro das atenções. Não sabia que ia ser tanto assim, mas acho que estou a lidar bastante bem. É importante frisar que tive a sorte de fazer um projeto não só de sucesso a nível de números mas a nível de conteúdo. Há coisas com grandes números mas depois, ao ver o conteúdo, pouco interessa. O que é que acontece? Sentes que o calor das pessoas é diferente. As pessoas não te usam tanto como um objeto. Já estive em discotecas onde alguém diz: «Olha! Está ali aquele da Casa dos Segredos». As pessoas filmam de longe, são um bocado evasivas. Eu via uma futilidade muito feia nessas situações. Aqui é diferente. Não é nada disso que estou a sentir. As pessoas gostam disto, identificam-se com o produto. Sou um privilegiado. As pessoas têm fascínio, falam de forma intensa, têm uma outra abordagem.
Como é que chegou até ao Carlinhos? Pode contar-me um bocadinho o processo de construção desta personagem?
Nós tivemos acesso a duas ou três cenas da série antes de começarmos a filmar e, logo no processo de casting, convém saber o máximo possível sobre o projeto. Por exemplo: «Eles são os melhores amigos, ok! Mas conhecem-se de onde? Há quanto tempo? São de Rabo de Peixe, ok! Vivem isolados, ok! Têm restrições diferentes… Como é que funcionam?». Aqui tem de existir um trabalho nosso de procura. «Como é que é ser este Carlinhos? Uma personagem LGBTQIA+, num ambientes destes, com estas condicionantes…». Só aí já tive uma preparação com alguma profundidade. Depois, no casting, o realizador fazia sempre questão de nos falar sobre o projeto. O que é que eles queriam… Isso são sempre inputs novos e as coisas vão-se construindo.
Eu sou ateu, não ligo a religião, conheço do ponto de vista cultural e percebo que é importante, mas não sou ligado. O Carlinhos é extremamente religioso, portanto, a forma como fala de Deus é muito diferente da forma como eu falo. Tive de aprender isso. E isso tinha de ser feito com verdade. «Porque é que as pessoas acreditam em Deus? O que é que está na base disto?». Tentei pegar por aí, trabalhar à base disso. Isto depois muda a forma como dizes o texto. «O Carlinhos nunca diria isto desta forma, tenho de continuar a procurar». Há todo um caminho… Também tivemos uma preparação física com o Pedro Medeiros que nos levou para o mar, que nos preparou para as rodagens, para correr, saltar, etc. Sabíamos que ia ser muito intenso. Tivemos uma semana em Rabo de Peixe com o realizador, muito ligados. Lemos os textos, dialogámos sobre as personagens, como as víamos, os elos de ligação, como é que as personagens se viam umas às outras… Fizemos essa partilha fantástica.
Depois, somos pescadores na série, por isso, fomos realmente pescar durante as noites. Tínhamos de aprender, de perceber o que é que aquelas pessoas vivem. Também tive vários encontros com a comunidade LGBTQIA+ aqui em Lisboa, com a comunidade de Rabo de Peixe com quem falámos de tudo e mais alguma coisa.
Eu fui à missa, conversei com um padre, porque na série a minha personagem relaciona-se com um padre… A igreja é um lugar de grande misticismo por aquilo que move não me movendo a mim. Mas eu tenho consciência que isso existe. Por isso, entrar numa igreja, é sempre especial. Deixa-me nervoso até. Sinto-me muito pequenino.
E existe alguma coisa do Carlinhos em si?
(risos) Existe sim! E vice-versa, porque o Carlinhos tem uma energia muito específica e fiquei muito feliz porque em muitas mensagens que recebi, as pessoas dizem-me que gostavam de ter um amigo como ele. Isso é muito interessante. Havia a tendência fácil e para mim muito desajustada e desinteressante de fazer um personagem LGBTQIA+ com toda a estética que se foi desenvolvendo, todos os estereótipos… Não quis ir por aí e acho que mais do que ser o personagem LGBTQIA+ da série, é um miúdo, com a experiência de quem nasceu em Rabo de Peixe, que tem uma relação profunda com a música, que é um apaixonado pelos amigos, que tem uma energia que o faz ser a alma do grupo… À parte disso tudo, é homossexual. Isso é apenas um ingrediente que compõe todo este bolo! Portanto, queria passar isso. As pessoas dizerem-me que queriam um Carlinhos na sua vida, deixa-me muito feliz. Acho que consegui o que pretendia.
O Carlinhos tem de mim a boa energia, o facto de sorrir muito – eu estou sempre a sorrir -, o ser apaixonado pela música, próximo dos amigos… Os meus amigos são uma extensão da minha família.
O facto do seu personagem fazer parte da comunidade deu-lhe uma responsabilidade acrescida?
Eu acho que sim, porque apesar de para mim isto já ser um «não assunto», infelizmente, em termos sociais, ainda o é. Se assim o é e nós temos essa responsabilidade, cá estamos para dar a cara e falar sobre isso. Seja para fazer uma personagem desta comunidade, ou de um estatuto social mais baixo, por exemplo, tem de existir um trabalho profundo de investigação. Corremos o risco de cair num estereótipo, falácia e erro. Temos de ser rigorosos. Eu achava que as pessoas que nós percebemos pela forma de estar e os olhares que fazem, que possuem alguns preconceitos, me iriam abordar na rua, fazer comentários menos corretos, mas não! Tem sido precisamente o oposto. Isso é uma grande conquista.
Acha que há algum peso maior pela história contada na série ser real?
O que dá peso aqui é o facto de nós estarmos a representar uma comunidade que existe. Agora, isto é uma história que é inspirada muito vagamente em factos reais. O Carlinhos não existe, estes personagens não existiram. Existiu o acontecimento. Um barco que deu à costa com aquelas toneladas de droga e as pessoas recolheram-nas da praia: uns fizeram negócios, outros consumiram, outros fizeram bolos, sem perceberem do que se tratava… Isso foi o que aconteceu. Estivemos por dentro dos relatos das pessoas que o viveram. Mas há toda uma ficção à volta.
Foi o projeto mais importante da sua vida até hoje. O que esperas que aconteça a seguir?
Desejo poder continuar a trabalhar na minha área e desejo sempre continuar a fazer projetos que me interessem tanto como ‘Rabo de Peixe’, seja do ponto de vista cinematográfico, do ponto de vista de texto, trabalhar autores clássicos em teatro, experimentar coisas lá fora com encenadores diferentes, diretores de atores, estéticas, técnicas diferentes… Portanto, quero explorar ao máximo as experiências todas que a arte me der porque quero viver a vida em toda a sua plenitude. l