Manual para assassinatos de caráter

Imaginam o que se passa na casa de alguém que está a ser ‘arrastado na lama’ durante dias, pela comunicação social?

Por Francisco Gonçalves 

Imaginemos que um deputado da Nação foi, na sua juventude, o que se pode designar de delinquente juvenil. Foi membro de uma claque de um clube de futebol e terá mesmo, alegadamente, chegado a incendiar um autocarro.

Imaginemos também uma jornalista que saiu de um grupo de comunicação social para um gabinete ministerial. Deixa o gabinete ministerial e é eleita vereadora numa autarquia. Não obstante, segue para uma agência de comunicação e, entretanto, é contratada para a assessoria da direção de um instituto público. Um caso de porta giratória entre público e privado, fazendo parte das ‘girls’ nomeadas ou contratadas por conveniência político-partidária.

Por fim, pense numa autarca que, no âmbito das suas funções, tem refeições de trabalho. Estas refeições, analisadas isoladamente, podem ser entendidas como um abuso, particularmente, por quem não conhece o quotidiano dos cargos executivos. 

Todos os personagens são reais. Todos podem ter o seu caráter analisado por estes factos, mas será que isoladamente os qualificam? 

 

O manual para um assassinato de caráter é relativamente fácil de seguir: pega-se num detalhe ou numa fase da vida de uma pessoa. Analisa-se superficialmente, retiram-se fotografias das suas redes sociais, compõem-se notícias e cria-se um turbilhão de comunicação negativa sobre essa pessoa.

Logo de seguida os comentadores dão a sua sentença. Há muito que se ultrapassou o campo da opinião, aqui crucifica-se. O juiz, como não sabe ser juiz, é apenas carrasco. Limpinho: julga-se, condena-se, mata-se e procede-se à cremação em plena praça pública. Um festim!

Tornou-se demasiado fácil destruir publicamente uma pessoa a partir de uma pequena parte da sua vida. Não se conhecem as suas ideias, o seu desempenho profissional, a sua inserção familiar ou social, mas de uma parte julga-se o todo, destruindo-se alguém publicamente, sem mais.

Ainda há poucas semanas recebemos a jornada mundial da juventude. O país parecia inspirado pela energia positiva daqueles jovens. Lamentavelmente, como se previa, a energia positiva desapareceu. Voltou a torrente de lama e os julgamentos na praça pública.

 

Como poderão os jovens que nos inspiraram durante a jornada envolver-se na vida política? Para quê? Para ser apedrejados na praça pública sem possibilidade real de defesa? Para que os ‘carrascos’ de serviço se possam banquetear com mais uma carcaça? ‘Não, obrigado’ – dirão! Escrevi há duas semanas, nesta mesma coluna, que não vivemos uma crise de participação, mas uma crise de participação política. Assim é, ser político hoje é quase ser mártir.

Não há nada que dê mais satisfação a quem goste da sua comunidade do que nela poder desempenhar um papel ativo. Hoje, porém, são cada vez menos os que têm a resiliência para enfrentar as dificuldades da vida pública.

 

Imaginam o que se passa na casa de alguém que está a ser ‘arrastado na lama’ durante dias, pela comunicação social? Quem escreve os artigos de opinião, particularmente os jocosos, certamente que se ri muito ao fazê-lo, mas será que os filhos dos seus alvos também se riem? Onde está o princípio da responsabilidade? Existe? Claro que não: ‘Aqui crucifica-se!’.

Por este andar, recordando as palavras da ex-ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, «não haverá quem queira ser padre desta paróquia».