Estava-me nas tintas! Queria era rio!

Em 1957, a Flandria resolveu criar uma equipa de competição. Em 1964 apresentou-se na Volta a Portugal – deu nas vistas, não ganhou.

No tempo em que Águeda era a terra das bicicletas, o meu tio Óscar Machado era engenheiro na Flandria. A Flandria era a Flandria e não havia cá discussões. Nem com a União Ciclista de Águeda nem com a Órbita que era, segundo o anúncio ‘A bicicleta que todos querem ter!’. Éramos miúdos pequenos quando o meu tio foi à Bélgica, em trabalho, com o colega Mendes Leal, e vieram de lá ambos com bicicletas de corrida para os filhos, o meu primo Pedro e o Joca. Era de estadão! Bicicletas de corrida e da Flandria! Chiça-catano! O resto da malta andava em pasteleiras e era um pau, discutindo com inveja quantas mudanças teriam aqueles bólides das estradas, tão, tão importantes que deram serventia a gente como Eddy Merckx, Rik van Looy, Freddy Maertens e Joop Zoetmelk. E Joaquim Agostinho, já agora.

A Flandria já era a Flandria quando surgiu na Volta a Portugal pela primeira vez, em 1964. Quero dizer: já era Flandria como equipa de ciclismo, como marca era bem mais antiga. Mas só a partir de 1957 é que os seus responsáveis resolveram entrar em provas. E à bruta! Logo com cabeças de pelotão como Joseph Planckaert e Rick van Looy e jovens como Merckx, Peter Post, Herman van Springel e Walter Godefroot.

Nessa Volta a Portugal participaram, além de Benfica, FC Porto e Sporting, o Sangalhos e o Recreio de Águeda, o que lhe deu um toque muito lá de casa, se entendem o que quero dizer. Que eu saiba foi a única vez que o Recreio participou na Volta, mas admito estar enganado. Não é de supina importância porque toda a gente queria era ver os ciclistas da Flandria. Mas a verdade é que não foi ninguém da Flandria a assumir o papel de vencedor final no dia 30 de Agosto quando se percorreu a histórica última etapa entre a Malveira e Lisboa, com entrada olímpica no Estádio de Alvalade depois do esforço derradeiro para trepar a Calçada de Carriche. Foi um festival de emoções. Primeiro porque o belga Franz Brandts tentou a sua sorte provocando uma fissura no pelotão, depois porque logo a seguir, na aldeia da Paz, o benfiquista António Acúrsio promoveu uma fuga tão inesperada como desesperada que o levou a passar pela Ericeira com um minuto e cinco segundos da primeira metade do pelotão que se partira em dois.

 

Na beira das estradas o povo vibrava. Os nomes mais consagrados eram berrados com intensidade. Em Terrugem, já António Acúrsio conseguira uma vantagem muito interessante de dois minutos. Era agora ou nunca! Toda a gente esperava por uma resposta a condizer e que faria deste final de Volta de 1964 um dos mais excitantes de sempre. A serra de Sintra apresentava-se, de repente, como um obstáculo duro. Mas Acúrsio parecia imparável e trepou-a como um macaco com rodas. Seria, no entanto, Sérgio Páscoa, do Tavira, a vencer o definitivo Prémio de Montanha. 

Seguia-se o mar e a Costa do Sol. E, no céu, o sol queimava forte a pele, os ombros e as costas dos ciclistas, atirando-os para um esforço impiedoso. Não havia tempo a perder, ignoravam olimpicamente a beleza da paisagem, desceram em vertigem até ao Guincho, tomaram o caminho de Cascais, o ritmo era forte e decidido. António Acúrsio entrou em Cascais sob uma salva excitada de aplausos mas notava-se que o cansaço começara a tomar conta dos seus movimentos. Por momentos fraquejou e isso foi-lhe fatal. O pelotão, ávido, absorveu-o. Era como se tivesse sido engolido por um polvo gigantesco com dezenas de pernas a triturem aquela que fora até aí a sua tarde de glória sob o sol. Outro belga, da Flandria, claro está, tentou nova fuga. O seu nome era Walter Bouquet. A Flandria não passaria pela Volta a Portugal sem deixar a sua marca. Bouquet parecia que voava sobre pedais. Seis quilómetros volvidos já tinha dois minutos de avanço sobre o pelotão.

Alvalade estava cada vez mais perto e Bouquet cada vez mais longe. O seu ritmo era infernal e parecia desprezar o calor bruto que se fazia sentir sobre Lisboa como se esta estivesse debaixo de um cobertor de papa. A vantagem do belga chegou aos três minutos e quinze. Entrou na pista de ciclismo do estádio num ambiente de festa e alegria. Bouquet que já tinha vencido nesse ano uma etapa da Volta à Itália erguia os braços e recebia a ovação devida ao vencedor da última tirada. A Flandria era a Flandria e decidira mostrar a sua força: a seguir a Bouquet, chegaram a Alvalade mais dois belgas, Van Den Bergher e Boonen. Não chegou para a vitória na classificação coletiva, que seria do FC Porto (Flandria em segundo), nem individual – Joaquim Leão, do FC Porto, ganhou. Em Águeda, o tempo passava mais devagar do que nunca passou. Nunca havia dias seguintes. Só as manhãs e as tardes na piscina fluvial do Sport Algés e Águeda. Confesso. Nunca quis muito saber da Volta. Estava-me nas tintas. Queria era o rio.