De Peyroteo a Espírito Santo, dos Cinco Violinos às duas Júlias, a Júlia Mendes e a Júlia Florista, com Amália pelo meio, pois claro! E a Madame Brouillard que adivinhava futuros nas palmas das mãos ali ao Chiado. De D. Pedro IV – e também I – à sua filha Maria. De Sacadura Cabral e Gago Coutinho ao senhor que dizia adeus junto à estátua do Conde de Saldanha que parece estar sempre a mandar parar um táxi. Surpreendente? Sim e não. Lá está, só nos surpreendem aqueles dos quais pouco esperamos. Estamos a falar de dois personagens que não enganam. Ferreira Fernandes era até há bem pouco o melhor cronista português, não sei por onde andarão as suas crónicas, fazem-me falta, fazem-me falta as crónicas neste jornalismo mecanizado e duro que parece considerá-las um parente pobre, ignorando a sabedoria muito própria dos parentes pobres que só parecem pobres mas são ricos por dentro de uma riqueza intrínseca. Ainda alinhavámos umas histórias juntos na Sábado de então. Tem tanto de terno como de corrosivo. Encontrou um parceiro à altura no Nuno Saraiva, com o seu estilo distinto e colorido que transforma os quadradinhos em desenhos animados – assim com um traço que parece quase displicente, à moda dos primeiros tempos de Émile Bravo, se ele não me leva a mal a comparação. Gostam ambos de Lisboa. Gostam muito de Lisboa. Só quem ama Lisboa a sério consegue produzir este Crónicas de Lisboa que nos faz subir à mais alta das sete colinas a bordo da Passarola de Gusmão.
Lisboa não é a minha terra, mas passou a ser a minha cidade. Infelizmente agora cada vez mais entregue aos bichos, como gosta de dizer o povo lá do alto da Carrajoles até aos cafundós de Alcantarilha, carregada de turistas famintos e sedentos vá lá saber-se de quê, talvez só de sol e Tejo e tudo e tudo. Lisboa tem Pessoa; Lisboa tem Josephine Baker (mesmo que só aos bocadinhos); Lisboa tem Santo António (o nosso Santo Antoninho) e tem olisipógrafos, que são os cientistas filósofos da sua saia cor do mar. E por isso tem também o Carlos do Carmo e o seu homem da cidade que por amar a liberdade com a cidade acorda e canta. Lisboa tem Phil Mendrix e sangue a infiltrar-se pelas pedras da calçada no tempo em que farta da monarquia declarou a república. Lisboa tem até a Costa da Caparica que, apesar de ser para lá do Tejo, é a praia mais lisboeta de todas as praias com perdão do Estoril que é finório. Lisboa tem Ary dos Santos e as gaivotas que derrotam todo o mau tempo no mar alto. Lisboa tem a Brasileira e recordações do 25 de Abril antes mesmo de ser Abril e cravos. Lisboa tem tantas histórias que, de repente, este livro fica curto e há um certo desalento de quem chega ao fim de uma viagem e anseia por mais quilómetros. Lisboa tem o Ferreira Fernandes e o Nuno Saraiva e fica a dever-lhes mais um bocadinho da sua existência milenar que nasceu com Ulisses, o Odisseu, e lhe deu nome. Respeitem-na e amem-na. Por que é única. Vão à janela e espreitem a luz e percebam bem lá no fundo que nunca viram nada igual.