Por Luís Paulino Pereira, Médico
Ao escrever este artigo, não posso deixar de recordar a minha tia Isabel, infelizmente já desaparecida, cuja personalidade tinha como traço principal uma capacidade invulgar para cativar amizades. Sempre que estava em causa uma pessoa sua amiga, dizia: «Amigo meu não tem defeitos». E com esta expressão deixava claro não ser capaz de ser isenta na apreciação de um amigo.
De facto, não é fácil julgar alguém por quem temos amizade, apesar de sabermos que não há ninguém perfeito e todos temos defeitos, por mais pequenos que sejam.
No caso concreto de D. Manuel Clemente, quero desde já declarar que se trata de um amigo de longa data, amizade que vem do tempo dos nossos pais e avós, também eles amigos e conterrâneos. Seguindo a ideia anterior, também ele não teria defeitos. Mas não é assim. Claro que os tem, como eu, como nós todos, mas quem sou eu para o julgar?
O que venho aqui dizer é bem diferente. É aquilo que tenho visto e testemunhado. A outra face deste grande homem da Igreja que cessou funções nos últimos dias por ter atingido o limite de idade.
Mas, afinal, o que há para lá do historiador e do cardeal que foi o grande impulsionador da Jornada Mundial da Juventude, que tanto prestígio deu a Portugal?
Há um homem simples, discreto, fugindo ao protocolo, com um apurado sentido de humor, honesto, sem nunca abdicar das suas convicções, nem alinhando no politicamente correto.
Esta firmeza de caráter valeu-lhe críticas, algumas das quais deixaram marcas que o desgastaram e entristeceram. Acompanhei-o de perto nos bons e maus momentos, e pude testemunhar a tristeza e a melancolia que se apoderaram dele nos últimos tempos, por se sentir injustiçado. Apesar de tudo, nunca fugiu às responsabilidades e continuou o seu trabalho sem querer deixar transparecer o peso das dificuldades que ia carregando.
Pouco tempo antes da Jornada, deslocou-se anonimamente ao Parque Eduardo VII para se inteirar do andamento dos trabalhos. Acompanhei-o nesse passeio a pé num dia de muito calor. Ao chegar ao ponto mais alto, junto ao altar-palco, vi nos seus olhos a satisfação pelo dever cumprido. Ficámos em silêncio. Não foram precisas palavras. Dias depois, Portugal mostrava-se ao mundo com o Papa em comunhão plena com os jovens. E, neste contexto, a sua discrição foi a nota dominante, sempre que acompanhou o Santo Padre.
Muito atento aos problemas da Igreja, deixa atrás de si uma obra e um trabalho de dedicação e de proximidade com as pessoas. Ao longo da sua caminhada terá tido falhas, como qualquer ser humano, e nem sempre estivemos de acordo nas decisões tomadas, mas demarco-me totalmente dos ataques pessoais injustos de que foi alvo neste final de mandato. Em democracia, o confronto de ideias é desejável, mas isso não dá o direito a ninguém de agredir na praça pública quem não pensa como nós.
De acordo com a lei natural que todos conhecemos, as pessoas passam mas a vida continua. A seguir a D. Manuel Clemente, eis que aparece o Sr. D. Rui Valério, cuja nomeação ‘fintou’ tudo e todos. Em minha opinião, foi uma nomeação inteligente, por ter fugido aos nomes dos considerados mais prováveis para a sucessão. Não o conheço pessoalmente, mas disseram-me que é «um homem muito competente e um bom pastor». E, a avaliar pelo trabalho de excelência que desempenhou como bispo das Forças Armadas, acredito que seja um digno sucessor de D. Manuel Clemente. Que Deus o ajude nas suas novas funções e, desde já, aqui lhe deixo o meu voto de confiança.
Continuarei a acompanhar o Sr. D. Manuel Clemente que sempre admirei como pessoa e como verdadeiro amigo. Tal como Sua Santidade recentemente nos recordava, «quem ama não desiste».