Selecção Nacional. O charme discreto da luxemburguesia

Portugal nem precisou de alardes exagerados para bater o recorde de goleadas – 9-0 ao Luxemburgo – e ter a fase final do próximo Europeu ao esticar da mão

Quando o sorteio colocou Portugal no grupo de apuramento para a fase final do Europeu mais fácil da sua história, com Eslováquia, Luxemburgo, Bósnia-Herzegovina, Islândia e Liechtenstein, logo se falou da famosa sorte do engenheiro Fernando Santos. Mas a sorte – esse apodo que lhe colocaram com alguma dose de verdade e outra dose de injustiça (ele na verdade é um homem de resultados e ponto – o final ou não é que já pode mexer com a dita fortuna) – acabou por ir parar ao colo de um treinador espanhol, Roberto Martínez, que transitou da seleccção belga para o substituir após o Mundial e, sobretudo, após a agudização das relações entre o treinador e o capitão Ronaldo. E enquanto a sorte não quer nada com Fernando Santos na sua nova aventura polaca, Roberto Martínez não precisa de sorte – só precisa que Portugal cumpra o destino que lhe cabe de ser muito melhor do que todos os adversários que tem pela frente, a ponto de se tornar praticamente obrigatória uma qualificação imaculada, ou seja, dez jogos/dez vitórias. E não, não é nada demais. É simplesmente o explanar de uma evidência.

Claro que, depois de cumprida a jornada seis desta empreitada, olhamos para trás e ficamos com a sensação de que o futebol da equipa nacional poderia ser, como dizer?, mais “saleroso”. Eis um facto. Só com uma disposição mental capaz de levar os Bartolomeus Dias desta vida a dobrarem vários cabos das tormentas é que alguém se senta pleno de alegria na bancada de um estádio ou no sofá lá de casa à espera de ver brotar dos pés dos jogadores portugueses alguma espécie de fogo de artifício do talento. Ele até pode lá estar, e para esse peditório já não tenho mais para dar, há tantos anos ando dizendo que colocar Portugal entre as melhores selecções e com melhores jogadores do universo é uma falácia que as eliminações constantes em fases tão precoces de todas as competições está aí para desmentir, mas não só não abunda como tem sido mal arrumado. Já se percebeu que, tal como o seu antecessor – até ao momento em que este se viu, vá lá, com boa vontade no termo, desconsiderado -, Roberto Martínez continuará a construir um conjunto em redor de Ronaldo, mesmo que tenha sido deprimente ver Ronaldo ter movimentos trapalhões dignos de piedade no encontro de Bratislava, já num arrastar bisonho do seu nome e na destruição arrasadora do seu prestígio, ainda por cima sempre desmentida por um bando de jornalistas que estão tão preocupados em tratá-lo como se fosse fabricado com cristal da Boémia (ou para ser mais nosso, com a fragilidade de um pucarinho de Estremoz), que fazem de propósito para ignorar as suas cada vez mais evidentes incapacidades. 

 

Deprimente!

Vamos e venhamos: foi deprimente aquela segunda parte de Ronaldo. Estou tranquilo em relação ao que escrevo, conheço-o desde os 17 anos, fui sempre seu amigo, não devemos nada um ao outro que não fique para lá da sinceridade. Com a mesmíssima certeza que lhe disse, num dos dias mais tristes da sua vida na selecção nacional, o 4 de Julho de 2004, no Estádio da Luz, que tinha tudo para ganhar, escrevo aquilo que aqui fica – ter Ronaldo em campo 90 minutos “para aquilo”, ainda por cima frente a um adversário abaixo do medíocre, é ter tudo para o ir perdendo. O lance em que falhou o pontapé numa bola solta na grande-área, sem ninguém a atrapalhá-lo, indo depois num gesto de desespero fazer um carrinho contra o guarda-redes que podia muito bem ter-lhe valido um vermelho (o amarelo impediu-o de jogar ontem, o que terá sido uma bênção) é de fazer doer a alma. Seria bom que Ronaldo (agora, pelos vistos, já independentizado, sem a brigada pesada que o rodeava a cada contacto com o exterior) e Roberto Martínez aproveitassem para falar sobre aquilo que pode, ou não, ser o seu futuro como capitão de Portugal. Pelo que se percebe, e tendo nós apenas mais um avançado-centro de topo – Gonçalo Ramos, claramente o melhor de todos os jovens que foram aparecendo entretanto para trabalharem como pontas-de-lança -, o lugar de 9 está confiscado até à fase final do Europeu, na Alemanha. Gonçalo teve aquele momento mágico do “hat-trick” à Suíça que encaixou no castigo a Cristiano Ronaldo e, depois disso, ficámos à espera, e a partir de agora estamos cada vez menos à espera porque me parece, a despeito da fraqueza tão charmantemente luxemburguesa, que preenche o lugar com qualidade e eficácia. 

A simplicidade foi a maior das qualidades do Portugal de ontem. Simplicidade de processos, com passes claros e dinâmica vertical bem mais agradável do que o excesso de dinâmica horizontal que apresentou na segunda parte do jogo de Bratislava provocando uma inevitável irritação aos que sabem que há formas bem mais interessantes e apaixonantes de encarar os problemas que nos surgem e que fazem parte dessa tal apaixonante incerteza do desporto ao qual o futebol pertence. Os golos e o recorde de goleadas foram aparecendo não num ritmo vertiginoso, que não é esse o nosso estilo, mas em ritmo de passeio. De um lado os luxemburgueses (tantos deles portugueses) vergados à sua inferioridade, do outro lado os burgueses de Portugal sem necessidade de se atirarem para esforços excessivos para transformarem a partida num tiro ao alvo, e a gente sabe que os espectadores querem mesmo é ver golos e quantos mais melhor, não fosse este um país de matraquilhos, geringonça essa nem por acaso inventada pelo Fernando Pessoa.

A qualificação de Portugal para o Euro está garantida e até pode dar uns pontos de barato já que passam directamente os dois primeiros de cada grupo. Mas o seleccionador tem, a partir de agora, em mãos, a parte mais interessante e complicada do seu novo trabalho: não precisa de uma equipa para ganhar de imediato, isso já foi feito e, ontem, à conta de uma goleada das antigas , 9-0 – golos de Gonçalo Inácio (15m e 45+4), Gonçalo Ramos (17 e 33m), Jota (57 e 77m), Ricardo Horta (67m), Bruno Fernandes (83m) e Félix (88m) – mas está na hora de aproveitar estes longos meses que se lhe estendem pela frente como uma planície andaluza para construir um conjunto que se apresente na Alemanha, não direi com a prespectiva de recuperar o fantasmagórico título de 2016 mas com cabeça-tronco-e membros para se bater de peito feito com os melhores (já não há papões nem tubarões) e não voltar para casa tristemente com o rabo entre as pernas. Para isso, deixassem lá ficar o engenheiro sossegado…